quarta-feira, 28 de outubro de 2009

REFLEXÃO E DEBATE CONTRA O ABORTO DE FETO SEM CÉREBRO

PROJETO MONOGRÁFICO
ADAÍVO RIBEIRO
Este Projeto foi criado com base no parecer do procurador Geral da República, além de uma extensiva pesquisa a opinião de vários doutrinadores do Direito Processual Civil, para que pudéssemos fazer uma reflexão sobre o aborto de feto sem cérebro.
Gênero e Leis esparsas. Campos dos Goytacazes /Setembro de 2003
Simpósio Temático 05: Gênero, Proteção e Segurança Pública
Título :” Reflexão e debate contra o aborto de feto sem cérebro”
Autor: Adaívo Ribeiro- Servidor da UFF, Bacharel em Direito, Formado em 2008 pela Faculdade de Direito de Campos., Tem experiência na área de Direito com ênfase em Direito Penal e Direito.Processual.Penal,.e.Direito.de.Família
Palavras chaves : Segurança Pública, Feto, Ministério Público
REFLEXÃO E DEBATE CONTRA O ABORTO DE FETO SEM CÉREBRO
UMA QUESTÃO JURÍDICA
Poucos assuntos são tão polêmicos como a questão da interrupção da gravidez de feto inviável. O assunto tem adversários vorazes que acabam por digladiarem-se no trato ético-ideológico da questão e não costumam avançar na matéria, deixando à mercê uma sociedade carente de normas.eficazes.sobre.o.tema.

Vivemos um momento histórico extremamente importante, pois a matéria vem sendo discutida pelo Supremo Tribunal Federal por iniciativa do Conselho Nacional dos Trabalhadores em Saúde, o qual obteve liminar permitindo a realização da interrupção da gravidez de feto inviável â?? portador de anencefalia â?? por meio de intervenção cirúrgica independentemente de autorização.judicial.

No entanto, nova decisão do STF derrubou a liminar, deixando novamente a ferida exposta, impedindo os procedimentos médicos de realização da interrupção da gravidez, nos casos de feto inviável, colocando em risco a saúde e a vida de milhões de mulheres que, após o conhecimento da doença, ficam à mercê de um Judiciário lento e, por vezes, implacável, impedindo a interrupção da gravidez. Causa, então, a essas mulheres um mal psicofísico de conseqüências drásticas à sua vida, podendo-se classificar esse tratamento como desumano ou degradante, o que é contrário ao princípio constitucional previsto no art. 5º, III da Carta de 1988.

Vale frisar que anencefalia é ausência de calota craniana, não visualização de parênquima cerebral, ou seja, mesmo com todo o avanço da tecnologia da medicina é impossível o feto viver fora do útero materno, tanto que mais de 50% dos casos não resistem ainda dentro do próprio útero.

A discriminação de gênero, que tem o instrumento de análise na diferença sexual entre homens e mulheres, é elemento ensejador da quebra do princÃ-pio de igualdade, inserida no contexto sob a perspectiva da possibilidade de a mulher, mãe de feto portador de anencefalia, ter o direito a optar pela realização da interrupção da gravidez. O direito à igualdade pressupõe o direito às diferenças. Assim, por meio dos instrumentos internos e internacionais, busca-se a proteção do direito à igualdade, baseando-se no respeito às diversidades.
O Brasil é signatário de uma série de tratados internacionais que visam, entre outras formulações, à implementação de ações e programas para reduzir as discriminações e as desigualdades sociais no âmbito dos direitos fundamentais.

A legislação brasileira é integrada por princípios e normas contemporâneas que buscam a igualdade de direitos, porém as normas infraconstitucionais, como o Código Penal, ainda mantêm preconceitos do início do século passado, criando verdadeira tensão valorativa de normas. Esse elemento se torna visível quando o legislador permite a realização legal de aborto proveniente de estupro, também conhecido como aborto sentimental ou moral, feto esse absolutamente saudável, mas as excludentes de punibilidade não abrangem a realização da interrupção da gravidez de feto anencefálico.

Some-se a esse aspecto a evolução da ciência e tecnologia que hoje dispõem de mecanismos que possibilitam o diagnÃ3stico intra-uterino da doença, ainda incurável, o que não havia na época da codificação das normas penais. Alegar a possibilidade de doação dos órgãos do feto como motivação contrária à interrupção da gravidez retira da mãe o direito de opinar sobre a doação. É algo que contraria o princípio da dignidade humana e a norma ordinária que prevê autorização expressa dos genitores para a doação, atribuindo tratamento desumano ou degradante à mulher que, mesmo sabendo da impossibilidade de vida do filho, deverá carregar aquele ser em seu ventre por meses.
Existem vários projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional sobre o tema, como a PL 3280/92 e PL 176/95, mas que, até a presente data, não foram apreciados com a devida urgência que o caso requer. Vale ressaltar, por fim, que a análise de mérito do Supremo Tribunal Federal sobre o tema não encerra a possibilidade de discussão em nÃ-vel internacional, por meio da Corte Interamericana de Direitos Humanos, considerando que é patente o conflito aparente de normas de direitos fundamentais, evidenciando a caracterização de tratamento desumano ou degradante às mulheres, mães de fetos portadores de doenças graves e irreversÃ-veis que não viabilizam vida extra-uterina.

Os pedidos judiciais que objetivam obter autorização para antecipar o parto de fetos portadores de anencefalia não são novidade no Judiciário Brasileiro. Desde 1989, foram concedidas cerca de 3.000 autorizações judiciais permitindo que mulheres interrompessem a gestação em casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida extra-uterina [01]. O Estado de Alagoas, inclusive, presenciou, no ano de 2000, sua primeira autorização de abortamento de feto anencéfalo proferida pelo Juiz Alberto Jorge Correia de Barros Lima, nos autos da Ação Cautelar Inominada de número 81/00.
Entretanto, apesar de velha conhecida dos Magistrados, a questão da legalização do aborto de feto anencefálico só conseguiu entrar no foco das discussões do Judiciário em 2004, quando a jovem Gabriela de Oliveira Cordeiro, após percorrer todas as instâncias da Justiça – juízo de 1º grau em Teresópolis, Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e Superior Tribunal de Justiça (STJ) – obtendo decisões conflitantes, teve sua filha, Maria Vida, que morreu sete minutos depois de nascer, antes que o Habeas Corpus n.º 84.025-6, impetrado em seu favor, fosse julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
A dúvida quanto à consideração ou não da "antecipação terapêutica do parto" [02] de feto anencéfalo como uma prática de aborto não prevista em lei, expõe os profissionais da saúde a processos penais por supostos crimes de aborto. Por isso, com o objetivo de resguardar a segurança jurídica dos profissionais da área da saúde, no dia 17 de junho de 2004, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), através de seu advogado, Luís Roberto Barroso, apresentou uma Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) perante a Suprema Corte Brasileira.
No dia 1º de julho de 2004, o ministro Marco Aurélio deferiu, nos autos da ADPF n.º 54, liminar autorizando o abortamento deCNTS, consistentes na afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. IV, da Constituição Federal), da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade (art. 5º, inc. II, da Carta), além do desrespeito ao direito à saúde (art. 6º e 196, da CF/88), em virtude da estrita subsunção da tipificação criminal do aborto, previsto no art. 124 e seguintes do Código Penal (CP), mesmo nos casos em que se verifica a ausência do cérebro no feto.
Todavia, no dia 20 de outubro de 2004, o STF, em sessão plenária, por maioria de votos (sete a quatro), revogou parcialmente a aludida medida liminar, para deixar de reconhecer o direito constitucional das gestantes de se submeterem à antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, mas para mantê-la no que tange ao sobrestamento de processos e decisões não transitadas em julgado relativos à prática do delito de aborto, em razão da anencefalia, até prosseguimento do julgamento para apreciação de questão de ordem acerca do cabimento da ADPF no caso e, em seguida, do mérito.
Aos 27 dias do mês de abril do ano de 2005, o STF admitiu, por sete votos a quatro, a ADPF sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencéfalos. Votaram a favor da APDF como instrumento processual pertinente para o caso os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence. Agora, resta esperar o julgamento do mérito, quando a Suprema Corte Brasileira dará uma solução definitiva sobre a questão, eliminando-se, assim, as decisões contraditórias em todo o território nacional.
A verdade é que o Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois do embrião e do feto, iniciam-se a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois a partir daí se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade a qual não poderia ser ignorada. Neste sentido, o suporte fático do crime de aborto é exclusivamente um feto prematuro, com potencialidade plena de nascer e de ser pessoa. Desta forma, o interesse da sociedade a ser preservado na gravidez é a expectativa de que o feto, decorrida a gestação, dê lugar a um ser humano, previsivelmente vivo.
Por outro lado, "muitos bebês com anencefalia são natimortos, e os que nascem vivos sobrevivem no máximo algumas horas" [03]. Não existe qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro desta anomalia, tornando-se a morte inevitável. Neste contexto, não havendo suporte fático do crime de aborto, por que a antecipação do parto de um feto feto anencefálico, acolhendo os argumentos apresentados pela CNTS, consistentes na afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. IV, da Constituição Federal), da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade (art. 5º, inc. II, da Carta), além do desrespeito ao direito à saúde (art. 6º e 196, da CF/88), em virtude da estrita subsunção da tipificação criminal do aborto, previsto no art. 124 e seguintes do Código Penal (CP), mesmo nos casos em que se verifica a ausência do cérebro no feto.
Todavia, no dia 20 de outubro de 2004, o STF, em sessão plenária, por maioria de votos (sete a quatro), revogou parcialmente a aludida medida liminar, para deixar de reconhecer o direito constitucional das gestantes de se submeterem à antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, mas para mantê-la no que tange ao sobrestamento de processos e decisões não transitadas em julgado relativos à prática do delito de aborto, em razão da anencefalia, até prosseguimento do julgamento para apreciação de questão de ordem acerca do cabimento da ADPF no caso e, em seguida, do mérito.
Aos 27 dias do mês de abril do ano de 2005, o STF admitiu, por sete votos a quatro, a ADPF sobre a descriminalização do aborto nos casos de fetos anencéfalos. Votaram a favor da APDF como instrumento processual pertinente para o caso os ministros Marco Aurélio, Carlos Ayres Britto, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Nelson Jobim e Sepúlveda Pertence. Agora, resta esperar o julgamento do mérito, quando a Suprema Corte Brasileira dará uma solução definitiva sobre a questão, eliminando-se, assim, as decisões contraditórias em todo o território nacional.
A verdade é que o Direito ampara a vida humana desde a concepção. Com a formação do ovo, depois do embrião e do feto, iniciam-se a tutela, a proteção e as sanções da norma penal, pois a partir daí se reconhece no novo ser uma expectativa de personalidade a qual não poderia ser ignorada. Neste sentido, o suporte fático do crime de aborto é exclusivamente um feto prematuro, com potencialidade plena de nascer e de ser pessoa. Desta forma, o interesse da sociedade a ser preservado na gravidez é a expectativa de que o feto, decorrida a gestação, dê lugar a um ser humano, previsivelmente vivo.
Por outro lado, "muitos bebês com anencefalia são natimortos, e os que nascem vivos sobrevivem no máximo algumas horas" [03]. Não existe qualquer possibilidade de tratamento ou reversão do quadro desta anomalia, tornando-se a morte inevitável. Neste contexto, não havendo suporte fático do crime de aborto, por que a antecipação do parto de um feto anencefálico deve ser considera como tal?
Na realidade, a análise desta questão, concernente à autorização ou não da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, apresenta, de um lado, o direito à vida, assegurado a todos após a concepção, e, de outro, os direitos à dignidade humana, à liberdade e à saúde, expressamente consagrados na Constituição Federal e que buscam pôr a vida humana a salvo de todo tipo de dor e injustiça. Neste sentido, torna-se claro que a solução para este caso passa evidentemente pela técnica da ponderação entre os interesses do feto anencefálico e os interesses da gestante, pois nenhum direito é absoluto, nem mesmo o direito à vida do nascituro, quando do outro lado da balança encontra-se a dignidade humana da gestante.
Desta forma, o presente trabalho, procurando demonstrar que a antecipação terapêutica do parto de feto anencefálico não configura uma conduta criminosa, excursionará, no Capítulo 1, pelos conceitos de aborto e anencefalia; apresentará os direitos concernentes ao anencéfalo e à gestante nos Capítulos 2 e 3, respectivamente; promoverá a necessária ponderação entre estes direitos no Capítulo 4; e, alfim, no Capítulo 5, analisará o abortamento do feto portador de anencefalia à luz de alguns conceitos da Teoria Jurídica do Crime.
Cabe ressaltar que o tema em exame é bastante controverso, envolvendo sentimentos diretamente vinculados a convicções éticas, morais, políticas, religiosas e filosóficas. Entretanto, este estudo tratará da matéria tão-somente sob o enfoque jurídico, "isso porque o certo ou o errado, o moral ou imoral, o humano ou desumano, enfim, o justo ou injusto, em se tratando de atividade jurisdicional em um Estado Democrático de Direitos, são aferíveis a partir do que suas Leis estabelecem" [04]. 1 CRIME DE ABORTAMENTO E CONCEITO DE ANENCEFALIA
O presente capítulo se ocupará exclusivamente dos exames do crime de aborto, bem como das causas excludentes de sua ilicitude, e do conceito de anencefalia. Pois estes assuntos são de fundamental importância para o desenvolvimento deste trabalho, uma vez que é preciso conhecer a anencefalia, assim como seu diagnóstico e complicações, para, só então, analisar se a antecipação do parto nesses casos constitui uma conduta delitiva ou não.
1.1 Aborto [05]
A prática do aborto nem sempre foi objeto de incriminação. Inicialmente, predominava a total indiferença do Direito em face do aborto, considerando o produto da concepção como parte integrante do corpo da gestante e, por conseguinte, deixando a critério da mulher a decisão acerca da conveniência ou não de dar continuidade à gravidez. Assim era em Roma, nos primeiros tempos, quando não era sancionada a morte dada ao feto. Por volta do ano 200 depois de Cristo, com o reinado do imperador Septimius Severus, o aborto passou a ser considerado uma lesão ao direito do marido à prole esperada, sendo sua prática castigada. [06]
Na Idade Média, a punição do aborto generalizou-se. De acordo com Santo Agostinho, baseado na doutrina de Aristóteles, "o aborto só seria delito em se tratando de feto animado, o que ocorria quarenta ou oitenta dias após a concepção, conforme fosse do sexo masculino ou feminino" [07]. De outro lado, São Basílio não admitia qualquer distinção entre feto animado e inanimado, considerando o aborto provocado sempre como criminoso. No Direito Canônico, o argumento predominante era o da perdição da alma do nascituro, que morria sem que fosse batizado. [08]
É certo que, em se tratando de aborto, "foi o Cristianismo que trouxe a concepção válida até os dias de hoje, no sentido de que o feto, mesmo no ventre materno, embora não se possa reputar como pessoa no seu sentido jurídico, representa um ser a quem a sociedade deve proteger e garantir o direito à vida" [09]. Com o Iluminismo, a equiparação entre os crimes de aborto e infanticídio foi abandonada, postulando-se, a partir de então, a redução das penas cominadas àquela espécie de delito. [10]
No Brasil, o Código Criminal do Império de 1830 não tipificava o aborto praticado pela própria gestante, apenas criminalizava a conduta de terceiro que realizava o aborto com ou sem o consentimento daquela. O Código Penal de 1890 distinguia no aborto os casos em que havia ou não expulsão do feto, cominando àquele pena mais grave, além de prever a figura do aborto provocado pela própria gestante. Por fim, o Código Penal de 1940 tipificou as figuras do aborto provocado (art. 124), aborto sofrido (art. 125) e aborto consentido (art. 126).
O aborto consiste na interrupção da gravidez com a conseqüente morte do produto da concepção, que pode ser o ovo, o embrião ou o feto. Ele pode ocorrer em qualquer fase da gravidez, ou seja, entre a concepção e o início do parto. A partir do instante em que se inicia o nascimento, o delito passa a ser de infanticídio ou homicídio, conforme o caso.
O aborto pode ser natural, acidental, criminoso, legal ou permitido, eugênico ou eugenésico e econômico-social. O primeiro é a interrupção da gravidez proveniente de causas patológicas, que ocorre de maneira espontânea. O segundo é a cessação da gravidez por conta de causas exteriores e traumáticas, como quedas e choques.
O aborto criminoso é a interrupção forçada e voluntária da gestação, culminando com a morte do feto. Enquanto que o aborto legal ou permitido é a cessação da gravidez, com a morte do feto, admitida por lei. O Código Penal permite duas formas de aborto legal: o aborto terapêutico ou necessário e o aborto sentimental ou humanitário. Estas espécies serão, logo após, objeto de um estudo mais aprofundado.
O aborto eugênico ou eugenésico consiste na interrupção da gravidez, causando a morte do feto, com o fim de "evitar o nascimento de seres afetados de graves desvios da normalidade, de origem hereditária, quer do ponto de vista puramente biológico, quer do ponto de vista da adaptabilidade social do novo ser" [11].
E, por último, o aborto econômico-social é a cessação da gestação, provocando a morte do feto, por razões econômicas ou sociais, quando a mãe não tem condições de cuidar do seu filho, seja porque possui família numerosa, seja porque não recebe assistência do Estado. Nesses casos, o nascimento e a criação do novo ser se tornariam um encargo penoso ou mesmo intolerável para a mulher ou sua família.
O bem jurídico tutelado na incriminação do aborto é a vida do ser humano em formação. No aborto provocado por terceiro, com ou sem o consentimento da gestante, tutelamvida e a incolumidade física e psíquica da mulher grávida. O objeto material do delito, por sua vez, é o embrião ou feto humano vivo em qualquer momento da sua evolução, até o início do parto. Por isso, torna-se necessário provar que o ser humano em formação se encontrava vivo quando da intervenção abortiva e que sua morte foi decorrência precisa desta intervenção ou da imaturidade do feto para viver no meio exterior.
O Código Penal Brasileiro prevê três espécies de aborto, diferenciadas entre si pela natureza do agente e pela existência ou não de consentimento da gestante: aborto provocado pela própria gestante (art. 124), aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125) e aborto provocado por terceiro com este consentimento (art. 126).
O art. 124 apresenta duas figuras típicas: 1ª) provocar aborto em si mesma; e 2ª) consentir que outrem lho provoque. No primeiro tipo, é a gestante que, através de meios executivos químicos, físicos ou mecânicos, provoca em si mesma a interrupção da gravidez, causando a morte do feto. No segundo tipo, a gestante consente que um terceiro lhe provoque o aborto. Nesta figura típica, a gestante atua como autor mediato, promovendo a execução através da intervenção de terceiro que age sem culpabilidade, "como é o caso em que finge um aborto espontâneo ou acidental incompleto, cujos restos um médico é chamado a eliminar, mas, na realidade, procedendo de boa-fé, provoca o aborto" [12].
O art. 125 cuida do aborto provocado sem o consentimento da gestante. "O aborto reputa-se praticado sem o consentimento, quer quando a gestante tenha se demonstrado – por palavras ou atos – contrária ao aborto, quer quando desconhecia a própria gravidez ou o processo abortivo em curso" [13]. Já o art. 126 prevê o aborto consensual. Neste caso, é o terceiro quem provoca o aborto, mas o faz com o consentimento da gestante, que precisa ter capacidade para tanto. Para caracterização do crime de aborto consensual, é imprescindível que a permissão da gestante esteja presente do início ao fim da conduta.
Dispõe o art. 127 do CP que as penas cominadas nos artigos 125 e 126 serão aumentadas de um terço se, em decorrência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave; e serão duplicadas se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevier a morte. Entretanto, se o agente, além da morte do feto, realmente desejou o resultado de dano à gestante ou previu e aceitou o risco de produzi-lo, responderá por crime de lesão corporal grave ou de homicídio concorrendo com o de aborto-se também a vida e a incolumidade física e psíquica da mulher grávida. O objeto material do delito, por sua vez, é o embrião ou feto humano vivo em qualquer momento da sua evolução, até o início do parto. Por isso, torna-se necessário provar que o ser humano em formação se encontrava vivo quando da intervenção abortiva e que sua morte foi decorrência precisa desta intervenção ou da imaturidade do feto para viver no meio exterior.
O Código Penal Brasileiro prevê três espécies de aborto, diferenciadas entre si pela natureza do agente e pela existência ou não de consentimento da gestante: aborto provocado pela própria gestante (art. 124), aborto provocado por terceiro sem o consentimento da gestante (art. 125) e aborto provocado por terceiro com este consentimento (art. 126).
O art. 124 apresenta duas figuras típicas: 1ª) provocar aborto em si mesma; e 2ª) consentir que outrem lho provoque. No primeiro tipo, é a gestante que, através de meios executivos químicos, físicos ou mecânicos, provoca em si mesma a interrupção da gravidez, causando a morte do feto. No segundo tipo, a gestante consente que um terceiro lhe provoque o aborto. Nesta figura típica, a gestante atua como autor mediato, promovendo a execução através da intervenção de terceiro que age sem culpabilidade, "como é o caso em que finge um aborto espontâneo ou acidental incompleto, cujos restos um médico é chamado a eliminar, mas, na realidade, procedendo de boa-fé, provoca o aborto" [12].
O art. 125 cuida do aborto provocado sem o consentimento da gestante. "O aborto reputa-se praticado sem o consentimento, quer quando a gestante tenha se demonstrado – por palavras ou atos – contrária ao aborto, quer quando desconhecia a própria gravidez ou o processo abortivo em curso" [13]. Já o art. 126 prevê o aborto consensual. Neste caso, é o terceiro quem provoca o aborto, mas o faz com o consentimento da gestante, que precisa ter capacidade para tanto. Para caracterização do crime de aborto consensual, é imprescindível que a permissão da gestante esteja presente do início ao fim da conduta.
Dispõe o art. 127 do CP que as penas cominadas nos artigos 125 e 126 serão aumentadas de um terço se, em decorrência do aborto ou dos meios empregados para provocá-lo, a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave; e serão duplicadas se, por qualquer dessas causas, lhe sobrevier a morte. Entretanto, se o agente, além da morte do feto, realmente desejou o resultado de dano à gestante ou previu e aceitou o risco de produzi-lo, responderá por crime de lesão corporal grave ou de homicídio concorrendo com o de aborto sentidos, o raciocínio, as emoções e a aprendizagem.
O tronco cerebral desempenha muitas funções especiais de controle, entre elas: controle da respiração, controle do sistema cardiovascular, controle da função gastrintestinal, controle de muitos movimentos estereotipados especiais do corpo, controle do equilíbrio e controle dos movimentos oculares. [16] Por isso, o anencéfalo, possuindo resíduos do tronco cerebral, consegue desenvolver as funções vitais de um ser humano normal.
No mesmo sentindo, utilizando-se dos ensinamentos de Mario Sebastiani, assim se manifesta Alberto Silva Franco:
Apesar da carência das estruturas cerebrais (hemisférios e córtex), o que ocasiona a total impossibilidade do exercício ‘de todas as funções superiores do sistema nervoso central que se relacionam com a existência da consciência e que implicam a cognição, a vida de relação, a comunicação, a afetividade, a emotividade’, o feto anencéfalo, em razão do tronco cerebral, preserva, de forma passageira, as ‘funções vegetativas, que controlam, parcialmente, a respiração, as funções vasomotoras e as funções da medula espinhal’. [17]
Em decorrência dessas graves carências do processo de desenvolvimento embrionário, o anencéfalo guarda, em altíssimo percentual, incompatibilidade com os estágios mais avançados da vida intra-uterina e total incompatibilidade com a vida extra-uterina. Aproximadamente 65% dos fetos afetados morrem ainda no período intra-uterino, enquanto que, dos 35% que chegam a nascer, a imensa maioria morre dentro de 24 horas e o resto dentro da primeira semana.
O desenvolvimento da anencefalia não está relacionado a uma causa específica, sendo, na verdade, um defeito multifuncional. Fatores nutricionais e ambientais podem influenciar indiretamente nesta malformação. Entre elas estão: exposição da mãe durante os primeiros dias de gestação a produtos químicos e solventes; irradiações; deficiência materna de vitamina do complexo B, especialmente o ácido fólico; alcoolismo e tabagismo. [18]
Presume-se que a causa mais freqüente seja a deficiência de ácido fólico. Por isso, os especialistas prescrevem a ingestão desta substância, através de alimentos e suplementos vitamínicos, três meses antes da concepção e nos primeiros meses de gestação. Contudo, tendo produzida no Brasil, com o intuito de prevenir o aparecimento de defeitos do tubo neural.
O diagnóstico da anencefalia pode ser realizado, com muita precisão, a partir da décima segunda semana de gestação, através de exame ultra-sonográfico, quando já é possível a visualização do segmento cefálico fetal. O feto anencéfalo apresenta uma característica única e inconfundível:
Não possui os ossos do crânio (a partir da parte superior da sobrancelha não há osso algum), razão pela qual sua cabeça não possui o formato arredondado. É por este motivo que comumente o feto portador desta anomalia é chamado de feto-rã. No local (e apenas em alguns casos) há somente o couro cabeludo cobrindo a porção não fechada por ossos. [19]
Além do exame visual, por intermédio da ultra-sonografia, é possível também a realização de exame biológico, através da análise dos níveis de alfafetoproteína no líquido amniótico e no soro materno. Entre a décima primeira e a décima sexta semana de gravidez, estes níveis se encontram sempre elevados em gestações de anencéfalos.
Entre as complicações que podem ocorrer durante e após a gestação do feto anencefálico, estão relacionadas as seguintes: prolongamento da gestação além do período normal de quarenta semanas; aumento do líquido amniótico, o que pode ocasionar dificuldades de respiração, de funcionamento do coração da gestante e até levá-la à morte; aumento da pressão arterial, comprometendo o bem-estar físico da gestante; puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratibilidade uterina; maior incidência de infecções pós-cirúrgicas devido às manobras obstétricas do parto de termo; alterações comportamentais e psicológicas de grande monta para a gestante.
Cumpre ressaltar que tanto os danos físicos quanto os psicológicos sofridos pela gestante de feto anencéfalo serão melhor analisados no Capítulo 3, ocasião em que se examinarão o princípio da dignidade humana e o direito à saúde assegurados constitucionalmente a gestante.

2 DIREITOS DO FETO ANENCÉFALO
Um dos argumentos que tem sido utilizado para fundamentar, nas decisões judiciais, a concessão de antecipação terapêutica do parto, em hipóteses de feto anencefálico, é aem vista que nem todas as gestações são planejadas, o ác equiparação da anencefalia (ausência de cérebro) à morte encefálica, prevista na Lei n.º 9.434/97, para fins de transplantes post mortem de órgãos e tecidos humanos. Neste contexto, não haveria direito à vida a ser preservado no que tange ao feto anencefálico e, portanto, seria viável a interrupção da respectiva gestação.
Este capítulo se responsabilizará pela análise e comprovação de que este argumento não procede. E, para tanto, examinar-se-á a suposta equiparação da anencefalia à morte encefálica, a aquisição de direitos pelo anencéfalo e o direito à vida a ele assegurado desde a concepção.
2.1 A não aplicação do conceito de morte encefálica ao anencéfalo e a aquisição de direitos por este ser humano
Com relação ao argumento de que a anencefalia caracterizaria situação semelhante à da morte encefálica, deve-se ressaltar que, uma coisa é utilizar a idéia de morte encefálica para permitir a extração de órgãos, tecidos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento; outra coisa, bem diferente, é aproveitar este conceito para sustentar que o feto anencéfalo não merece qualquer proteção jurídica.
O Conselho Federal de Medicina (CFM), em consulta realizada pelo Ministério Público do Estado do Paraná acerca da viabilidade do uso de órgãos de anencéfalos para transplante [20], afirma que a razão de ser da inaplicabilidade do conceito de morte encefálica aos fetos anencefálicos está em que a morte não é um evento, mas sim parte de um processo, sendo o conceito de morte uma convenção que considera um determinado ponto desse processo. Isto é, "vida e morte constituem um processo contínuo, gradual e complexo, não um episódio isolado e, como processo, têm um desenrolar encadeado no tempo" [21].
A morte encefálica não se dá apenas com a ausência ou suspensão definitiva das atividades do sistema nervoso superior ou cortical, mas de todas as funções do encéfalo. O que não configura o caso do anencéfalo, que, apesar daquela espécie de ausência, possui resíduos do tronco encefálico e, consequentemente, desenvolve funções vitais, como a respiratória e a cardiovascular.
Outrossim, o que se pretende com o conceito de morte encefálica é apenas determinar um momento a partir do qual é segura a retirada de órgãos do corpo humano para fins de transplante, não sendo possível aduzir que mesmo a partir dele não haja vida, ainda que ido fólico foi adicionado à farinha minguante. Trata-se, pois, de conceito de morte para uma finalidade específica.
De acordo com o art. 1º da Resolução n.° 1.480, do Conselho Federal de Medicina, "a morte encefálica será caracterizada através da realização de exames clínicos e complementares durante intervalos de tempo variáveis, próprios para determinadas faixas etárias" [22]. Acontece que os exames complementares necessários para constatação de morte encefálica só são realizados em seres humanos com no mínimo sete dias de vida e, geralmente, os anencéfalos que chegam a nascer morrem clinicamente durante a primeira semana de vida, não sendo possível a realização destes testes com eles.
Ademais, é importante salientar que para a declaração final de morte encefálica é indispensável a ausência de respiração sem o auxílio de respiradores mecânicos, o que confirma a necessidade de lesão total de todo o encéfalo. No entanto, em alguns casos, dependendo do grau de lesão do tronco cerebral pela anencefalia, os fetos portadores desta anomalia são capazes de respirar sem o auxílio de qualquer tipo de aparelho.
Deste modo, levando-se em conta tudo o que foi exposto até agora, conclui-se que os critérios de morte encefálica são inaplicáveis com relação ao feto anencefálico, ou seja, não cabe ver, no anencéfalo, um morto no ventre materno ou sequer um ser com morte encefálica na existência extra-uterina. Isto porque, não se pode pretender que um ser humano que padece da falta de parte do tecido cerebral, mas que mantém as demais funções vitais, seja considerado morto por antecipação.
A natureza de ser humano, desde a concepção e até a morte, não se altera pela má-formação encefálica, que atinge parte das funções encefálicas de nível superior ou cortical. Pois, como expôs Pontes de Miranda, "o Código Civil desconhece monstros, monstra. Quem nasce de mulher é ser humano" [23]. Ainda nesta sentido, observam-se as palavras do filósofo australiano Peter Singer:
Não há dúvida de que, desde os primeiros momentos de sua existência, um embrião concebido do esperma e dos óvulos humanos é um ser humano; e o mesmo se pode dizer do ser humano com as mais profundas e irreparáveis deficiências mentais, até mesmo de um bebê que nasceu anencefálico – literalmente, sem cérebro. [24] nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". De uma análise deste dispositivo, percebe-se que o sistema jurídico brasileiro requer, para a aquisição de direitos pelo nascituro, apenas o nascimento com vida. Pressupõe, desta forma, que todo produto gerado da união de um espermatozóide com um óvulo é um ser humano por excelência e que não é a viabilidade ou potencialidade de vida que tornam um feto mais ou menos digno da proteção do Estado e da aquisição de direitos.
Ratificando tal explanação, utilizar-se-á dos ensinamentos de Pontes de Miranda:
Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. [25]
Entretanto, se o feto vem a falecer logo após o parto, como é comum acontecer com os anencéfalos que chegam a nascer, como saber se efetivamente viveu? Nestes casos, a Medicina Legal responde que a vida será comprovada pela respiração do bebê. Havendo dúvidas a respeito da ocorrência da respiração, realiza-se o exame clínico denominado Docimasia de Galeno, através do qual os pulmões do feto são imersos em água. Caso os pulmões flutuem, constata-se que se encheram de ar pelo menos uma vez. Assim, o bebê viveu e, consequentemente, adquiriu todos os direitos daí decorrentes. Contudo, se os pulmões afundarem, não houve troca de gases entre o feto e o meio ambiente, logo, não há que se falar em vida e em aquisição de direitos.
Portanto, se, após terem decorrido os nove meses de gestação, se opera o parto de feto anencefálico (nascimento) que respira (vida), é evidente que ele adquire personalidade civil, tornando-se sujeito de direitos e obrigações. Tanto é assim, que nascido o feto, não importando a duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e enterrado. [26]
Outrossim, examinando-se a segunda parte do dispositivo acima transcrito (art. 2º do NCC), percebe-se que também é lícito afirmar que o ser humano, mesmo antes de se separar do corpo da mãe, já é titular de direitos. Pois, mesmo erigindo o nascimento como requisito indispensável à aquisição da personalidade, o ordenamento jurídico pôs a salvo os direitos deste ser em formação desde a concepção. Trata-se de vida intra-uterina, que também merece proteção nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". De uma análise deste dispositivo, percebe-se que o sistema jurídico brasileiro requer, para a aquisição de direitos pelo nascituro, apenas o nascimento com vida. Pressupõe, desta forma, que todo produto gerado da união de um espermatozóide com um óvulo é um ser humano por excelência e que não é a viabilidade ou potencialidade de vida que tornam um feto mais ou menos digno da proteção do Estado e da aquisição de direitos.
Ratificando tal explanação, utilizar-se-á dos ensinamentos de Pontes de Miranda:
Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. [25]
Entretanto, se o feto vem a falecer logo após o parto, como é comum acontecer com os anencéfalos que chegam a nascer, como saber se efetivamente viveu? Nestes casos, a Medicina Legal responde que a vida será comprovada pela respiração do bebê. Havendo dúvidas a respeito da ocorrência da respiração, realiza-se o exame clínico denominado Docimasia de Galeno, através do qual os pulmões do feto são imersos em água. Caso os pulmões flutuem, constata-se que se encheram de ar pelo menos uma vez. Assim, o bebê viveu e, consequentemente, adquiriu todos os direitos daí decorrentes. Contudo, se os pulmões afundarem, não houve troca de gases entre o feto e o meio ambiente, logo, não há que se falar em vida e em aquisição de direitos.
Portanto, se, após terem decorrido os nove meses de gestação, se opera o parto de feto anencefálico (nascimento) que respira (vida), é evidente que ele adquire personalidade civil, tornando-se sujeito de direitos e obrigações. Tanto é assim, que nascido o feto, não importando a duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e enterrado. [26]
Outrossim, examinando-se a segunda parte do dispositivo acima transcrito (art. 2º do NCC), percebe-se que também é lícito afirmar que o ser humano, mesmo antes de se separar do corpo da mãe, já é titular de direitos. Pois, mesmo erigindo o nascimento como requisito indispensável à aquisição da personalidade, o ordenamento jurídico pôs a salvo os direitos deste ser em formação desde a concepção. Trata-se de vida intra-uterina, que também merece proteção
O art. 2º do Novo Código Civil estabelece que "a personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". De uma análise deste dispositivo, percebe-se que o sistema jurídico brasileiro requer, para a aquisição de direitos pelo nascituro, apenas o nascimento com vida. Pressupõe, desta forma, que todo produto gerado da união de um espermatozóide com um óvulo é um ser humano por excelência e que não é a viabilidade ou potencialidade de vida que tornam um feto mais ou menos digno da proteção do Estado e da aquisição de direitos.
Ratificando tal explanação, utilizar-se-á dos ensinamentos de Pontes de Miranda:
Quando o nascimento se consuma, a personalidade começa. Não é preciso que se haja cortado o cordão umbilical; basta que a criança haja terminado de nascer (= sair da mãe) com vida. A viabilidade, isto é, a aptidão a continuar de viver, não é de exigir-se. Se a ciência médica responde que nasceu vivo, porém seria impossível viver mais tempo, foi pessoa, no curto trato de tempo em que viveu. [25]
Entretanto, se o feto vem a falecer logo após o parto, como é comum acontecer com os anencéfalos que chegam a nascer, como saber se efetivamente viveu? Nestes casos, a Medicina Legal responde que a vida será comprovada pela respiração do bebê. Havendo dúvidas a respeito da ocorrência da respiração, realiza-se o exame clínico denominado Docimasia de Galeno, através do qual os pulmões do feto são imersos em água. Caso os pulmões flutuem, constata-se que se encheram de ar pelo menos uma vez. Assim, o bebê viveu e, consequentemente, adquiriu todos os direitos daí decorrentes. Contudo, se os pulmões afundarem, não houve troca de gases entre o feto e o meio ambiente, logo, não há que se falar em vida e em aquisição de direitos.
Portanto, se, após terem decorrido os nove meses de gestação, se opera o parto de feto anencefálico (nascimento) que respira (vida), é evidente que ele adquire personalidade civil, tornando-se sujeito de direitos e obrigações. Tanto é assim, que nascido o feto, não importando a duração de sua vida, ele terá que ser registrado, emitido seu atestado de óbito e enterrado. [26]
Outrossim, examinando-se a segunda parte do dispositivo acima transcrito (art. 2º do NCC), percebe-se que também é lícito afirmar que o ser humano, mesmo antes de se separar do corpo da mãe, já é titular de direitos. Pois, mesmo erigindo o nascimento como requisito indispensável à aquisição da personalidade, o ordenamento jurídico pôs a salvo os direitos deste ser em jurídica por dizer respeito a um ser humano.
Neste momento, passar-se-á a análise do direito à vida de que é titular o anencéfalo.

2.2 Direito à vida
O Art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito à vida. Este é, na verdade, o mais fundamental de todos os direitos, aquele direito originário para o qual todos os outros existem e estão submetidos. Assim, seria absolutamente inútil assegurar outros direitos fundamentais, como a liberdade, a igualdade, a intimidade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.
Além do art. 5º, a Carta Magna impõe o respeito à vida em diversos outros dispositivos. Ao assegurar o direito à saúde (art. 196), a proteção à criança e ao adolescente (art. 227), o amparo aos idosos (art. 230), por exemplo, a Lei Maior demonstra que a proteção à vida assume caráter de verdadeiro princípio, a nortear todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Ao tratar do tema, Ives Gandra Martins leciona:
O direito à vida, talvez mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos logo após o nascimento, pois estes não teriam condições de viver sem tal proteção, dada sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger o direito à vida do mais fraco, a partir da ‘teoria do suprimento’. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidas contra insuficientes. [27]
A expressão ‘direito à vida’ compreende uma dupla acepção: 1ª) o direito de permanecer vivo, que já pressupõe a existência do indivíduo; e 2ª) o direito de nascer vivo, que antecede ao surgimento do indivíduo no mundo exterior. Qualquer indivíduo gerado no ventre de uma mulher tem esse direito, não importando para isso o modo de nascimento, seu estado físico ou psíquico. Por isso, cumpre ressaltar que a Carta Constitucional protege a vida de forma geral, desde a concepção até a morte.
Na primeira acepção da expressão ‘direito à vida’, encontra-se caracterizado o direito à existência, que, de acordo com o constitucionalista José Afonso da Silva, "consiste no direito de formação desde a concepção. Trata-se de vida intra-uterina, que também merece proteção jurídica por dizer respeito a um ser humano.
Neste momento, passar-se-á a análise do direito à vida de que é titular o anencéfalo.
2.2 Direito à vida
O Art. 5º, caput, da Constituição Federal de 1988, assegura a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, o direito à vida. Este é, na verdade, o mais fundamental de todos os direitos, aquele direito originário para o qual todos os outros existem e estão submetidos. Assim, seria absolutamente inútil assegurar outros direitos fundamentais, como a liberdade, a igualdade, a intimidade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana num desses direitos.
Além do art. 5º, a Carta Magna impõe o respeito à vida em diversos outros dispositivos. Ao assegurar o direito à saúde (art. 196), a proteção à criança e ao adolescente (art. 227), o amparo aos idosos (art. 230), por exemplo, a Lei Maior demonstra que a proteção à vida assume caráter de verdadeiro princípio, a nortear todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Ao tratar do tema, Ives Gandra Martins leciona:
O direito à vida, talvez mais do que qualquer outro, impõe o reconhecimento do Estado para que seja protegido e, principalmente, o direito à vida do insuficiente. Como os pais protegem a vida de seus filhos logo após o nascimento, pois estes não teriam condições de viver sem tal proteção, dada sua fraqueza, e assim agem por imperativo natural, o Estado deve proteger o direito à vida do mais fraco, a partir da ‘teoria do suprimento’. Por esta razão, o aborto e a eutanásia são violações ao direito natural à vida, principalmente porque exercidas contra insuficientes. [27]
A expressão ‘direito à vida’ compreende uma dupla acepção: 1ª) o direito de permanecer vivo, que já pressupõe a existência do indivíduo; e 2ª) o direito de nascer vivo, que antecede ao surgimento do indivíduo no mundo exterior. Qualquer indivíduo gerado no ventre de uma mulher tem esse direito, não importando para isso o modo de naestar vivo, de lutar pelo viver, de defender a própria vida, de permanecer vivo. É o direito de não ter interrompido o processo vital senão pela morte espontânea e inevitável" [28].
Já na segunda acepção, verifica-se que o direito à vida abrange também a vida intra-uterina, uma vez que o embrião representa um ser individualizado, com uma carga genética própria, que não se confunde nem com a do pai, nem com a da mãe. Neste caso, protege-se a potencialidade da vida, ou seja, o desenvolvimento da vida na fase da gestação e sua continuação no pós-parto.
Torna-se necessário reforçar que vida do feto deve ser protegida, ainda que apresente anomalia ou má-formação a comprometer o funcionamento de órgão ou de sistema próprio da natureza desse ente; pois, não obstante isso, o nascituro continua mantendo a vida, no ventre materno, com a deficiência que o acomete. [29]
A vida humana encontra sua principal proteção nas leis penais. Para concretização desta proteção, o ordenamento jurídico divide a vida em três estágios: o primeiro inicia-se na concepção e vai até o momento anterior ao início do trabalho de parto; o segundo situa-se entre o início do trabalho de parto até os momentos seguintes ao nascimento; e o último inicia-se quando o momento imediato ao parto é concluído e perdura por toda a vida do homem. A diferentes fases há diferentes crimes contra a vida: aborto, infanticídio e homicídio, respectivamente.
Ainda que constitucionalmente protegido, o direito à vida não é absoluto, havendo hipóteses nas quais ele pode ser violado. A primeira delas é a previsão constitucional da pena de morte, admitida somente no caso de guerra externa declarada, nos termos do art. 5º, inciso XLVII, alínea "a". Nestas situações, a Carta Maior considera que a sobrevivência da nacionalidade é um bem mais valioso do que a vida individual de quem porventura venha a trair a pátria por motivos bélicos.
A legítima defesa constitui outra situação legitimadora da violação ao direito à vida, uma vez que não se pode impedir que uma pessoa, injustamente agredida, se defenda, empregando os meios necessários e suficientes para repelir a agressão, mesmo que para isso acabe por tirar a vida de outrem. Em estado de necessidade, também é possível eliminar a vida de alguém, desde que para salvar de perigo atual e inevitável, não provocado involuntariamente, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício não era razoavelmente exigível, e desde que não haja outra forma de evitar o dano. Aqui, pode-se mencionar como exemplo o aborto necessário ou terapêutico, no qual se salva a vida da mãe em detrimento da vida do concebido.




3 DIREITOS DA GESTANTE
Os fundamentos jurídicos a favor do aborto do feto anencefálico levantados pela Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental, que foi apresentada ao Supremo Tribunal Federal pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, consistiam na afronta aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e da autonomia da vontade, além do desrespeito ao direito à saúde, em virtude da estrita subsunção da tipificação criminal do aborto, previsto nos arts. 124 e seguintes do Código Penal, mesmo nos casos em que verifica a ausência do cérebro no feto.
O objetivo do presente capítulo é analisar cada um dos direitos assegurados constitucionalmente as gestantes, quais sejam, respeito à dignidade da pessoa humana, direito à saúde e direito à liberdade. Por isso, sem maiores delongas, passar-se-á ao exame deles.
3.1 Dignidade da pessoa humana
A Constituição Federal de 1988 elevou, no art. 1º, inciso III, o princípio da dignidade da pessoa humana à posição de fundamento da República Federativa do Brasil e, consequentemente, do Estado Democrático de Direito. Passou, ainda, a considerar que é o Estado que existe em função da pessoa e não esta em função daquele. Assim, toda e qualquer ação estatal deve ser avaliada, sob pena de ser declarada inconstitucional e de violar a dignidade da pessoa humana, considerando-se cada pessoa como um fim em si mesmo ou como meio para outros objetivos.
A dignidade da pessoa humana representa um complexo de direitos que são atributos da espécie humana, sem eles o homem se transformaria em coisa. São direitos como a vida, lazer, saúde, educação, trabalho, cultura, que devem ser pro tamanha carga tributária. Esses direitos servem para fortalecer o direito à dignidade humana.
Não existe uma determinação criteriosa de conceituação do que seja dignidade da pessoa humana. Na doutrina nacional, o conceito que melhor sintetiza todo o rol de proteção estabelecido por esse princípio, é o elaborado por Ingo Wolfgang Sarlet, ao afirmar que:
Entende-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [30]
O princípio da dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não pode ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, no art. 5º, III, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Por sua vez, a dimensão positiva presume que o Estado deve promover ações concretas que, além de evitar agressões, criarão condições efetivas de vida digna a todos, como preconizado por um projeto constitucional inclusivo.
Nos casos em que a mulher está grávida de um feto portador de anencefalia, a violação à dignidade da pessoa humana consiste no fato de se impor que ela leve adiante a gestação de um feto destinado a morrer instantes após o parto, causando-lhe dor, angústia e frustração. Neste contexto, muitas mulheres comparam a experiência da obrigatoriedade da gravidez de um feto portador de anencefalia à tortura. [31]
Imagine-se a situação psicológica da mãe que faz milhares de planos para quando seu filho nascer, adquire móveis e enxoval, escolhe o seu nome, imagina as características físicas e psicológicas que ele terá após o nascimento e que, de repente, sem aviso prévio, se descobre grávida de um feto que não possui qualquer tipo de chance de sobrevida extra-uterina, mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer antes de a gestação chegar ao fim.
Nesta direção, observa-se um excerto do voto [32] proferido pelo Ministro do STF, Carlos Ayres piciados pelo Estado e, para isso, paga-se tamanha carga tributária. Esses direitos servem para fortalecer o direito à dignidade humana.
Não existe uma determinação criteriosa de conceituação do que seja dignidade da pessoa humana. Na doutrina nacional, o conceito que melhor sintetiza todo o rol de proteção estabelecido por esse princípio, é o elaborado por Ingo Wolfgang Sarlet, ao afirmar que:
Entende-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. [30]
O princípio da dignidade da pessoa humana possui duas dimensões que lhe são constitutivas: uma negativa e outra positiva. Aquela significa que a pessoa não pode ser objeto de ofensas ou humilhações. Daí o nosso texto constitucional dispor, no art. 5º, III, que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Por sua vez, a dimensão positiva presume que o Estado deve promover ações concretas que, além de evitar agressões, criarão condições efetivas de vida digna a todos, como preconizado por um projeto constitucional inclusivo.
Nos casos em que a mulher está grávida de um feto portador de anencefalia, a violação à dignidade da pessoa humana consiste no fato de se impor que ela leve adiante a gestação de um feto destinado a morrer instantes após o parto, causando-lhe dor, angústia e frustração. Neste contexto, muitas mulheres comparam a experiência da obrigatoriedade da gravidez de um feto portador de anencefalia à tortura. [31]
Imagine-se a situação psicológica da mãe que faz milhares de planos para quando seu filho nascer, adquire móveis e enxoval, escolhe o seu nome, imagina as car Britto, nos autos da ADPF n.º 54:
Embora como um desvio ou mais precisamente um desvario, não há como recusar à natureza esse episódico destrambelhar. Mas é cultural que se lhe atalhe aqueles efeitos mais virulentamente agressivos de valores jurídicos que tenham a compostura de proto-princípios, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De cujos conteúdos fazem parte a autonomia de vontade e a saúde psico-físico-moral da gestante. Sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda ("A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu"), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem sequer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus. [33]
Uma mulher que recebe o diagnóstico de uma gravidez cujo feto é anencéfalo vê cair por terra todos os seus planos de realização e felicidade. É uma dor inimaginável, um sofrimento que só aquelas que passam por tal situação têm condições de descrever. Por isso, vejam-se alguns trechos da entrevista concedida por Gabriela de Oliveira Cordeiro [34] a Débora Diniz no dia 03 de março de 2004:
Uma mulher chegou ao nosso lado e me perguntou: "Por que está chorando? É o primeiro filho? Qual o nome? Tem berço?". Eu chorei tanto, que assustei o hospital todo, todo mundo veio falar comigo. Isso já acontecia antes. Eu saía na rua, as pessoas viam minha barriga e me perguntavam: "já fez o chá-de-bebê?".
(...)
Um dia eu não agüentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia acterísticas físicas e psicológicas que ele terá após o nascimento e que, de repente, sem aviso prévio, se descobre grávida de um feto que não possui qualquer tipo de chance de sobrevida extra-uterina, mas, ao contrário, tem grandes chances de morrer antes de a gestação chegar ao fim.
Nesta direção, observa-se um excerto do voto [32] proferido pelo Ministro do ST Britto, nos autos da ADPF n.º 54:
Embora como um desvio ou mais precisamente um desvario, não há como recusar à natureza esse episódico destrambelhar. Mas é cultural que se lhe atalhe aqueles efeitos mais virulentamente agressivos de valores jurídicos que tenham a compostura de proto-princípios, como é o caso da dignidade da pessoa humana. De cujos conteúdos fazem parte a autonomia de vontade e a saúde psico-físico-moral da gestante. Sobretudo a autonomia de vontade ou liberdade para aceitar, ou deixar de fazê-lo, o martírio de levar às últimas conseqüências uma tipologia de gravidez que outra serventia não terá senão a de jungir a gestante ao mais doloroso dos estágios: o estágio de endurecer o coração para a certeza de ver o seu bebê involucrado numa mortalha. Experiência quiçá mais dolorosa do que a prefigurada pelo compositor Chico Buarque de Hollanda ("A saudade é o revés de um parto. É arrumar o quarto do filho que já morreu"), pois o fruto de um parto anencéfalo não tem sequer um quarto previamente montado para si. Nem quarto nem berço nem enxoval nem brinquedos, nada desses amorosos apetrechos que tão bem documentam a ventura da chegada de mais um ser humano a este mundo de Deus. [33]
Uma mulher que recebe o diagnóstico de uma gravidez cujo feto é anencéfalo vê cair por terra todos os seus planos de realização e felicidade. É uma dor inimaginável, um sofrimento que só aquelas que passam por tal situação têm condições de descrever. Por isso, vejam-se alguns trechos da entrevista concedida por Gabriela de Oliveira Cordeiro [34] a Débora Diniz no dia 03 de março de 2004:
Uma mulher chegou ao nosso lado e me perguntou: "Por que está chorando? É o primeiro filho? Qual o nome? Tem berço?". Eu chorei tanto, que assustei o hospital todo, todo mundo veio falar comigo. Isso já acontecia antes. Eu saía na rua, as pessoas viam minha barriga e me perguntavam: "já fez o chá-de-bebê?".
(...)Um dia eu não agüentei. Eu chorava muito, não conseguia parar de chorar. O meu marido me pedia para parar, mas eu não conseguia. Eu saí na rua correndo, chorando, e ele atrás de mim. Estava chovendo, era meia-noite. Eu estava pensando no bebê. Foi na semana anterior ao parto. Eu comecei a sonhar. O meu marido também. Eu sonhava com ela no caixão. Eu acordava gritando, soluçando. O meu marido tinha outro sonho. Ele sonhava que o bebê ia F, Carlos Ayres nascer com cabeça de monstro. Ele havia lido sobre anencefalia na Internet. Se você vai buscar informações é aterrorizante. Ele sonhava que ela tinha cabeça de dinossauro. Quando chegou perto do nascimento, os sonhos pioraram.
(...)
Eu não tive esperanças na hora do parto. Ela não chorou. O médico falou que ela poderia durar três dias. O corpo estava todo perfeito. O pior momento foi quando ela morreu. O desespero foi enorme. [35]
Assim, tendo em vista todo o sofrimento enfrentado por essas mulheres, pode-se concluir que obrigá-las a carregar, em seu ventre, um ser que deixará de existir se dela desconectado, constitui uma ofensa à sua dignidade de mulher, de mãe, enfim, de pessoa humana.

3.2 Direito à saúde
O conceito de saúde formulado pela Organização Mundial da Saúde (OMS), abrangendo aspectos sociais e emocionais, além da simples ausência de doença, engloba o completo bem-estar físico, mental e social. Seguindo esta conceituação, o direito à saúde, garantido constitucionalmente nos arts. 6º, caput, e 196 a 200, impõe ao Estado a obrigação de atendimento às demandas que possam propiciar aos cidadãos uma vida sem nenhum comprometimento que afete seu equilíbrio físico ou mental. O aborto do feto anencefálico
Um dos temas mais polêmicos e debatidos no Direito nos últimos anos é o aborto do feto anencéfalo, isso porque nosso Código Penal nada dispõe em seu art. 128 ( que apresenta as causas especiais de exclusão do delito de aborto) e também aqueles que se propõem a discutir a caso do feto anencefálico, muitas vezes apegam-se a questões morais, éticas ou religiosas de tal modo que deixam de solucionar a questão, aliás, em nada contribuem.
Muitos esquecem que a gestante é quem merece toda a atenção no caso em tela, pois esta é quem sofre com a gestação de um ser que sabe não ter outra opção após o parto a não ser enterrá-lo. Assim, o estudioso que pretender abordar a questão, deve buscar incansavelmente uma solução para que a mesma não seja criminalizada, pois, conforme tivemos a oportunidade de consignar:
A gravidez é um momento especial para mulher, sendo certo, que por muitas vezes esse período é imaginado desde os tempos de menina, assim, exigir que a mesma destrua o sonho de ser mãe, obrigando-a a uma gravidez de feto que se sabe não ter chance alguma de vida extra-uterina, é absolutamente violador do princípio da dignidade da pessoa humana [1].
Assim, não podemos admitir que a gestante que se encontre em gravidez por ser o feto anencéfalo seja criminalizada. Destarte, surge a indagação: Como justificar a prática do aborto do feto anencefálico?
Há de se destacar inicialmente que no caso da interrupção da gestação do feto anencéfalo, temos o denominado aborto eugênico que é aquele em que há comprovação médica de ser feto portador de graves e irreversíveis anomalias que inviabilizam a vida extra-uterina.
Antes de responder como justificar a pratica do aborto no caso de comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencefálico, é necessário esclarecer o que significa anencefalia, desse modo, trazemos a lição de nosso querido amigo, o ínclito Dr. Pedro Lazarini Neto[2]:
A anencefalia (do grego an= sem; enkepalos= cérebro), ou seja, “sem cérebro”, é anomalia congênita, uma anormalidade do desenvolvimento do embrião e do feto, constituindo-se, pois, em gravíssimo problema do sistema nervoso, advindo assim uma anomalia resultante de um defeito do tudo neural do embrião. Essa anomalia, letal, ocorre entre o 20º e o 28º dia após a concepção, entre a terceira e a quarta semana do desenvolvimento do feto. Todas as funções do cérebro são comprometidas. Ainda conforme observa Bruno Reis, é impossível a vida extra-uterina, bem como qualquer tipo de tratamento. O quadro é fatal em 100% dos casos.
Ainda lembra José Aristodemo Pinotti citado por Guilherme de Souza Nucci[3] que “a maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas é questão de dias”.
Destarte, a gestante que se encontrar em gestação em que há comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo, caso realize o aborto, não deve ser criminalizada, pois, para nós, sua conduta configura CRIME IMPOSSÍVEL POR ABSOLUTA IMPROPRIEDADE DO OBJETO (art. 17 do Código Penal Brasileiro), pois as manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida, pelo menos para o Direito.
Crime impossível por absoluta impropriedade do objeto? As manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o Direito? Sim, estamos neste caso diante de um inequívoco crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, pois as manobras abortivas recaem sobre um corpo sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, porquanto o art. 3º da Lei 9.434/97 dispõe que a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica, logo, como o feto anencéfalo carece desta atividade, trata-se de um ser que para o Direito jamais viveu, demonstrando assim, a impropriedade absoluta do objeto que conduz a configuração do crime impossível.



Vejamos o referido artigo da Lei 9.434/97 :
Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.
Desse modo, para nós, a gestante encontra-se amparada pelo crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, excluindo-se assim a tipicidade de sua conduta, pois recaindo esta sobre corpo sem vida, conclui-se que é impossível matar aquilo que para nosso Ordenamento Jurídico jamais viveu.
Necessário ainda consignar que para Rogério Sanches Cunha[4]:
A doutrina ao que parece, procura legitimar essa espécie de abortamento (feto anencefálico), valendo-se de um contorcionismo jurídico alcançado pela interpretação sistemática com a lei 9.434/97, que determina o momento da morte com a cessação da atividade encefálica. Ora, se a cessação da atividade cerebral é caso de morte (não vida), feto anencefálico não tem vida intra-uterina logo, não morre juridicamente (não se mata aquilo que jamais viveu para o direito). A operação terapêutica caminha, desse modo, para a atipicidade.
Cumpre esclarecer que não se trata de um contorcionismo jurídico como ensina o ilustre penalista, pois asseverar que as manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, conduzindo assim a configuração de crime impossível (que exclui a tipicidade da conduta), decorre de uma análise técnica e uma interpretação sistemática do nosso Ordenamento, visto que se para o Direito a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica e o feto anencéfalo carece desta, conclui-se que é impossível fulminar a existência daquilo que para nosso Ordenamento Jurídico jamais esteve vivo.
A princípio nossa posição pode chocar alguns (apesar de que para nós, não há qualquer choque), porém, o que choca na verdade, é a tentativa incansável de muitos em prolongar a discussão, trazendo para a questão dilemas éticos, religiosos ou morais, que em nada ajudam, aliás, atrapalham, pois, a gestante não encontra resposta definitiva para a sua tormentosa e cruel situação.
É iníquo que o Direito Penal venha exigir que a gestante que tenha a devida comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo continue a gestação, sob pena de cometimento do crime de aborto, pois após o “nascimento” deste ser, a gestante, infelizmente, só terá a opção de chorar e enterrá-lo. Não temos dúvida que tal exigência é inequívoca violação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Desse modo, como dissemos em nossa pequena obra “Crimes Contra a Vida”[5]:
Mais uma vez reforçamos que a gestante que tenha a comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo, caso venha a interromper a gravidez, para nós, está amparada pelo crime impossível, pois não é possível matar aquilo que para nosso Ordenamento Jurídico nunca viveu.
Para encerrar nossa pequena explanação, deixaremos aqui duas frases imprescindíveis para uma reflexão acerca do caso em tela: a primeira é atribuída ao filósofo Edmund Burke “para que o mal triunfe basta que os bons não façam nada”. A segunda frase é do professor da Faculdade de Direito de Paris, Georges Ripert “quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito”.


Jurisprudência.sobre.aborto.eugênico
(a evidência do absurdo tem levado vários desembargadores a cassar alvarás de juízes para abortar crianças defeituosas)
Lamentavelmente (para não dizer vergonhosamente) multiplicam-se os casos em que juízes, arvorando-se em legisladores de exceção, concedem autênticos “alvarás para matar” nascituros defeituosos. Esta onda é condizente com a doação feita pela Fundação Mc Arthur de 72.000 dólares para “promover a discussão e demonstrar, com base em julgamentos anteriores, que se pode obter decisão da Justiça para interromper a gravidez no caso de sérias anomalias do feto. Duração: três anos. 1996-1999” (Fonte oficial: FNUAP - Inventory of Population Projects in Developing Countries Around the World - 1996). De fato, já dizia a cartilha do imperialismo contraceptivo norte-americano, o conhecido “Relatório Kissinger”, de 10/12/1974: “Certos fatos sobre o aborto precisam ser entendidos: nenhuma país já reduziu o crescimento de sua população sem recorrer ao aborto” (NSSM 200, Implications of Worldwide Population Growth for US Security and Overseas Interests, p. 182).
No entanto, convém salientar:
— que nem sempre os juízes deferiram os pedidos de autorização para aborto eugênico;
— que, até o ponto em que pesquisei, todos os pedidos de Habeas Corpus ou Mandado de Segurança para cassar a autorização judicial para um aborto eugênico, foram deferidos, dada a gritante ilegalidade e abuso de poder da parte coatora.

a) Medidas judiciais em defesa do nascituro (todas deferidas)
a.1) TJRJ Processo : 2000.059.01629
"Habeas-Corpus". Concessão. Os abortos eugênico e o econômico não são reconhecidos pelo Direito pátrio, que considera impuníveis apenas os abortos necessário e o sentimental, "ex-vi" art. 128, I e II do C.P. Ordem concedida em favor do feto em gestação para que não seja dolosamente inviabilizado seu nascimento. (SCK)
Partes: Segredo de Justiça
Rev. Direito do T.J.E.R.J., vol 45, pag 400
Tipo da Ação: HABEAS CORPUS
Número do Processo: 2000.059.01629
Data de Registro : 22/09/2000
Folhas: 11017/11021
Comarca de Origem: Capital
Órgão Julgador: Sexta Câmara Criminal
Votação : Unânime
Des. Eduardo Mayr
Julgado em 04/07/2000
a.2) TJRJ Processo No 2000.059.01697
Tipo : Habeas Corpus
Órgão Julgador : Sexta Camara Criminal
Relator : Des. Mauricio Da Silva Lintz
Impetrante : Amparo Maternal
Paciente : Feto que esta sob gestação no útero de Maria Aparecida Aleixo.
Origem : Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Data : 20/08/2001
SESSÃO DE JULGAMENTO
Data da sessão : 20/06/2000
Decisão : Preliminarmente, de oficio, foram suscitadas pela presidência duas preliminares; a primeira, referente à possibilidade jurídica do pedido, que foi decidida no sentido de que o pedido é licito e admissível, a segunda, quanto a competência deste órgão fracionário, decidida no sentido de ter a câmara competência para o conhecimento da impetração; ambas as decisões foram tomadas a unanimidade. Ainda, em preliminar, para efeito de eventual concessão da ordem, entendeu a turma julgadora, ante a questão posta pela presidência, da desnecessidade da nomeação de curador ao nascituro, ante o evidente conflito de interesse entre a gestante e o embrião. No mérito, concedeu-se, por maioria, a ordem, consolidando a liminar, no sentido de vedar a interrupção da gravidez, vencido o Des. Valmir Ribeiro, que denegava o writ.
Des. Presidente : Des. Eduardo Mayr
Vogais: Des. Luiz Leite Araújo e Des. Valmir Ribeiro
REGISTRO DE ACÓRDÃO
Data de remessa : 20/06/2001
Data Registro Acórdão : 21/06/2001
Numeração Automática : Sim
Qtd. Folhas : 9
Folhas : 007408/007416
Remessa ao Protocolo : 21/06/2001
a.3) TJRJ Processo No 2000.078.00044
Tipo : Mandado de Segurança
Órgão Julgador : Seção Criminal
Relator : Des. Silvio Teixeira
Impetrante : Osvaldo Gomes
Impetrado : Juízo de Direito Da 2a.Vara Criminal da Capital
Origem : Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Decisão: "Trata-se de mandado de segurança, impetrado, em 09.06.2000, por Osvaldo Gomes, visando a desconstituir ato do Juízo da 2. Vara Criminal (II Tribunal do Júri) da Comarca da Capital, que autorizou a Maternidade Osvaldo Nazaré, situada na Praça 15 de Novembro, a realizar o ato cirúrgico de interrupção da gravidez de Cleide dos Santos Alves, já em avançado estado de gestação de "feto portador de irreversível ma formação em conseqüência de anencefalia". Liminar deferida, "para sustar a realização do ato cirúrgico", como se vê de fls. 16/17. Prestadas as informações a fls. 21, com anexação de cópias e encaminhamento dos autos do respectivo processo, que foram requisitados e apensados. Nomeado Curador de nascituro (fls. 38), tendo-se pronunciado (fls. 44/66). Mantida a liminar, deferida outras diligencias, determinado que se verificasse o resultado do julgamento do H.C. n. 1629/2000.
a.4) TJGO Processo n.º 199901414157
Tipo: Habeas Corpus com Pedido de Concessão de Liminar (HC 16184-8/217)
Relator: Des. Byron Seabra Guimarães, vice-presidente do TJGO
Impetrante: Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Paciente: Nascituro anencéfalo no útero da Sra. Silvana Cristina F. Neto
Autoridade Coatora: Dr. Alvarino Egídio da Silva Primo - 1ª vara criminal de Goiânia — protocolo 199901341605 - alvará judicial)
Liminar deferida em 28/07/1999.
Despacho (excertos):
No meu entender, não existe perspectiva de um bom direito para amparar o pedido de autorização judicial, tal como foi deferido, mesmo porque, se”... a lei não contempla o pedido dos requerentes," (f. 16), não poderia haver atendimento nesse particular”.
(...)
“Assim, defiro parcialmente o pedido, para o fim exclusivo de suspender a execução da autorização judicial, conforme consta do alvará de f. 18, até que a egrégia Primeira Câmara Criminal julgue o mérito do presente "habeas corpus", se ainda ela não tiver sido efetivada, caso em que, ficará prejudicado o pedido inicial.”
(...)
“Goiânia, 28 de Julho de 1999”
Nota: lamentavelmente, a decisão da liminar favorável ao nascituro chegou tarde, quando a intervenção cirúrgica já havia sido feita.


b. Medidas judiciais contra o nascituro (indeferidas)
b.1) Juízo de Direito da 29a Vara Criminal da Capital do Estado do Rio de Janeiro - Processo n° 2000.001.062364-3
Tipo: Pedido de autorização para interrupção de gestação
Requerente: Flávia Cristina de Carvalho Spinelli
Julgado em: 18 de maio de 2000
Relatora: Dra. Maria Luiza De Oliveira Sigaud Daniel
Sentença (excertos):
Segundo Tardieu o crime de aborto consiste na “expulsão prematura e violentamente provocada do produto da concepção, independentemente das circunstâncias de idade, viabilidade e mesmo de formação regular”. Para a configuração do aborto é necessária a interrupção da gravidez, seguida ou não da expulsão do feto, antes da época de sua maturidade. Conforme ensina Zarnardlli: “a essência do aborto consiste no impedir o processo fisiológico de maturação do feto”.
Deste modo, vemos que a lei penal protege a vida em seu sentido amplo, a vida humana em germe, e não meramente a expectativa de vida extra-uterina. Comprovado o estado fisiológico da gravidez, ou seja, que o feto estava vivo, não há indagar da sua vitalidade biológica ou capacidade de atingir a maturação.
A anomalia diagnosticada, é uma síndrome genética, e não consiste na ausência de cérebro, como erroneamente se pode supor, mas na ausência de calota craniana, o que significa que a criança tem o cérebro exposto, podendo inclusive ter algumas funções neurológicas preservadas.
Durante o período gestacional a criança desenvolve-se normalmente, apresentando, no entanto, má formação cerebral consistente em comprometimento do sistema nervoso central, que só pode ser averiguado quando da realização da autópsia.
Enquanto no ventre materno a criança, cresce e se desenvolve normalmente, apesar do cérebro exposto, por estar em um meio asséptico. Na literatura médica relatada não existem casos de sobrevivência, a criança nasce e respira, podendo viver meros segundos, 24 horas e até sete dias, dependendo das implicações neurológicas.
A situação da criança não é de morte cerebral, ela tem um cérebro, que apesar de não poder desenvolver suas funções intelectivas, pode ter algumas funções preservadas. Ela possui o tronco cerebral que é responsável pelos batimentos cardíacos, pela respiração, pelos movimentos dos olhos, demais funções do tronco cerebral.
(...)
Entende este Juízo que o feto afetado por esta síndrome não pode ser privado do curto lapso de tempo da vida que possui. Tal procedimento consistiria na prática da eugenia, que visa não somente evitar o nascimento de seres com taras hereditárias, mas também o de seres portadores de deformidades congênitas.
O avanço da medicina tem por objetivo salvar vidas e não ceifá-las, eis que de acordo com a ética médica não se pode negar nenhum tipo de assistência á alguém eu vai morrer. No caso em exame, sabe-se, antecipadamente, quando a criança morrerá, ela tem meses de vida, como um doente terminal. O aborto nestes casos iguala-se a eutanásia, só que praticada em relação a um nascituro em já avançado estágio gestacional.
O sofrimento e o abalo psíquico da mãe só poderão ser minimizados pelo amor e apoio da família e por acompanhamento psicológico, fazendo-a compreender que carrega em seu ventre não um ser morto, mas um ser vivo que desenvolve-se plenamente nos demais aspectos físicos. Abreviar o tempo de vida pré-determinado, consiste em grave ilícito penal que não encontra amparo em nosso ordenamento jurídico vigente, malgrado entendimentos contrários.
Ademais o Juiz não tem esse poder, isto é, o poder de determinar até quando alguém vai viver. Nosso poder, graças a Deus, é limitado, pois também estamos submetidos a ordem jurídica em vigor. É absurdo que a requerente e o médico que a assiste desejem chancelar suas condutas ilícitas, pois apesar de emanar do órgão julgador, consiste em ilícito penal de extrema gravidade.

b.2) TJRJ - Processo n° 2000.078.00042
Tipo: Mandado de Segurança n.º 42/2000 [recurso contra a sentença acima transcrita]
Órgão Julgador: Seção Criminal
Relator: Des. Estenio Cantarino Cardozo
Impetrante: Flávia Cristina de Carvalho Spinelli
Impetrado: Juízo de Direito da 29ª Vara Criminal da Comarca da Capital
Origem: Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro
Ação: 2000.001.062364-3
Julgado em 21 de junho de 2000.
Ementa:
Mandado de Segurança. Competência da Seção Criminal. ABORTO EUGÊNICO. LIMINAR SATISFATIVA, se deferida impediria o conhecimento da causa por parte do Órgão competente. Relevância do pedido. Há situações em que tal exame se torna imprescindível, sob pena de inviabilizar a tutela jurisdicional. ANENCEFALIA. anomalia fetal consistente na ausência da calota craniana, não é permissiva para se autorizar o aporto, como se infere do art. 128, I e II do Código Penal A lei não prevê a isenção de pena para o abortamento eugenésico, isto é, com a eliminação de fetos doentes ou defeituosos, O magistrado não tem o poder de autorizá-lo, nem será o médico jungido a fazê-lo, porque ofenderia, por certo, sua consciência e ética profissional O feto, nesses casos, é dotado de vida intra-uterina ou biológica e é, por isso, protegido pelas normas constitucionais e pelo direito natural, O direito civil tutela o nascituro porque há possibilidade de vida (art.4º do Código Civil), daí advindo uma série de conseqüências, principalmente de ordem sucessória. Permitir o aborto eqüivaleria a prática da eutanásia, só que praticada contra um ser em formação, dotado de todas as funções.Não se trata de um ser sem vida. Haveria a distanásia. A Lei 9434/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos e partes do corpo humano para fins de transplante, só permite fazê-lo "post mortem” e o transplante deve ser precedido de minucioso exame feito por uma equipe médica cirúrgica que comprove, sem sombra de dúvida, a morte encefálica. Não se argumente com essa lei, porque se trata de caso diverso. Não é o caso dos autos, pois o feto está com vida. A Lei não deu no magistrado o poder divino de determinar o término da vida. Os apologistas do aborto eugênico nasceram, estão todos vivos. Denegada, por maioria, a ordem.

Declaração de voto do Des. Carlos Brazil (excertos):
Derradeiramente, observa-se que a autora deste mandamus, estando grávida e submetida a exame de ultrassonografia com o diagnóstico de uma má formação fetal denominada “anencefalia” ou “ausência da calota craniana” no filho que traz em seu ventre, com provável vida extra-uterina de pouquíssimos dias, pediu a autorização judicial para que seja submetida ao aborto do seu filho, porque se encontra “muito abalada e debilitada com a situação”.
(...)
A propósito deste julgamento, uma leitora do jornal A NOTÍCIA, nos enviou a sua vivência:
"Lendo o jornal A NOTÍCIA e acompanhando a evolução do caso da mãe que quer abortar o seu filho anencéfalo, gostaria de relatar a minha experiência, visto que passei pela mesma situação. Pedro era uma criança muito esperada e amada desde a confirmação da gravidez (era o nosso primeiro filho). No sexto mês de gravidez fiz uma ultra-sonografia e foi constatado que o meu filho sofria de anencefalia e que morreria logo após o nascimento. O médico prontamente quis retirar o meu filho através e uma cesariana para a interrupção da gravidez. Apesar da nossa grande tristeza, ficamos um pouco até indignados por não conseguirmos entender como se pode querer privar alguém que mesmo muito doente e sem esperanças receba o carinho e o amor que não tem medida e é totalmente incondicional que é o amor da mãe pelo seu filho, sendo este saudável ou doente, sem mãos ou com mãos ou mesmo sem um órgão vital. Nas noites que se seguiram lembro-me que chorei muito, mas vendo a minha barriga mexer eu conversava com meu filho e o sentia vivo dentro de mim. Passei, tenho certeza, muito amor e carinho para o Pedro. Eu e o meu marido, a partir daí, passamos a nos preparar para o seu nascimento, que foi na hora em que ele deveria vir. Foi triste por um lado, mas maravilhoso por outro. O meu filho não foi jogado fora numa lata de lixo como um objeto que saiu da fábrica com defeito. Foi registrado e enterrado como um cidadão, que foi de fato. Pedro Couto dos Santos Monteiro viveu 4 dias rodeado por mim e pelo meu marido, o vi fazer xixi, evacuar, chorar, "baubuciar" e morreu segurando em uma das mãos o meu dedo e na outra mão o dedo do pai. Dei para o meu filho o melhor que eu tinha para lhe dar, o direito de nascer e de se sentir muito amado, mesmo que não sendo o filho fisicamente perfeito que todo pai e toda mãe esperam ter".
(...)
É deste quadro que se nos apresenta a determinação para que se faça o aborto, fazendo cessar uma vida. É o emprego da coação para retirar o exercício de direito à vida, e à violência para evitar o exercido do referido direito, máxime se não houver supedâneo jurídico para embasar a determinação feita por um juiz para que se interrompa a vida de um nascituro. O que ocorre neste pedido de Mandado de Segurança é, sem dúvida, a prática de um abuso de direito em face de um nascituro não ouvido, não defendido, a cassação desse dom maior que é a vida. É irrecusável o assertiva de que o direito determina e regulamente a conduta humana antes mesmo do seu nascimento, ao conferir ao nascituro o direito à vida, suprimindo como o atentado contra a sua existência.

b.3) Juízo de Direito da 14ª Vara Criminal da Comarca de Goiânia - Processo n.º 2001.007.69190
Tipo: Autorização para interrupção de gravidez
Órgão Julgador: 14ª Vara Criminal da Comarca de Goiânia
Requerente: Rosiane Souza do Nascimento
Julgado em 16 de maio de 2001
Relator: Dr. José Machado de Castro Neto, juiz substituto, respondendo pela 14ª Vara Criminal.
Sentença (excertos):
Na realidade, a ilação que se tira do exame do pedido é que o fundamento da Requerente para o mesmo é a circunstância de que o feto é portador de anormalia que, certamente, levará a morte seu filho pouco tempo após o nascimento, cuidando-se, pois, de aborto eugênico, para o qual não existe autorização na lei, merecendo, pois, o repúdio da Justiça, a quem cumpre o indeclinável dever de assegurar os direitos do nascituro, conforme disposição expressa no Código Civil Brasileiro, entre os quais, evidentemente, está elencado o direito de nascer.

A morte é consequência inarredável de quem nasce e, portanto, não pode ser invocada como motivo para justificar o aborto, cuja prática é tida, em regra, como crime.
(...)
Carissimo,

Gostaria de saber seu posicionamento sobre a possibilidade (iminente, já que o STF está prstes a decidir de modo favorável ou não) de legalização do aborto de fetos com anencefalia.
A medicina diz que é quase impossível um feto se desenvolver sem cerébro ou parte dele, ou mesmo chegar a nascer. Vários pensamentos de especialistas da medicina e ciência dizem que é quase improvável a vida fora do útero (e mesmo dentro dele) sem cérebro.
A Fé e a consciência de muitos falam mais alto e se posicionam a favor do nascimento desses bebês com anencefalia.

Desde já agradeço a atenção em responder ao meu questionamento.

Bruna Teles

RESPOSTA



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É que se a Justiça passar a autorizar o aborto eugênico na situação do caso em julgamento, amanhã os jurisdicionados poderão bater às portas do Tribunal para exigir autorização, em outras situações como, por exemplo, porque o feto apresenta algum problema que o impossibilitará de ter uma vida tida como normal ou porque a mãe ou pai daquele feto não dispõe de recursos para prover sua manutenção, entre outros casos.
(...)
Isto posto, rejeito o parecer ministerial e denego o pedido.
Muito se discute a cerca do tema aborto, pois sem duvida é um tema bastante polêmico, e um dos principais obstáculos para a legalização do aborto seria definir o momento exato do inicio da vida, acerca deste polêmico tema, CALLARAN identificou três escolas básicas de opinião na questão de definir o inicio da vida.

São estas: a escola genética, a escola desenvolvimentista escola das conseqüências sociais, cada escola tem uma opinião a cerca de quando o feto passa a ter vida, a escola genética acredita que o feto passa a ter vida a partir da concepção, esta também é a opinião do nosso ordenamento jurídico, já a escola desenvolvimentista defende a tese de que o feto necessita ter um desenvolvimento mais avançado não basta apenas ser concebido mas sim ser concebido e se desenvolver, para esta escola a vida começaria a partir da nidação, tese da qual também compartilho, e para a ultima escola, a vida começaria a partir de um determinado evento social.

Outra discusão gerada sobre o tema aborto é a sua conceituação e são vários os conceitos de aborto que podemos encontrar na seleta doutrina, assim, buscaremos destacar os conceitos: médico-legal e jurídico.

Numa visão médico-legal do conceito de aborto, mais especificamente na obstetrícia, disciplina que estuda às questões ligadas à procriação dos seres humanos, é a interrupção da gestação dentro de um lapso de tempo predeterminado. Assim, na definição de Kunde e Sabino abortamento é:
”[...] a interrupção da gestação antes de completar 20 semanas ou 139 dias, com expulsão parcial ou total dos produtos da concepção, com ou sem identificação do embrião ou feto vivo ou morto, pesando menos de 500g. Pode-se dividir em precoce, se ocorrer antes de 12 semanas, ou tardio, se entre 12 semanas e 20 semanas. “
Já, a Embriologia humana, ciência que estuda a origem e o desenvolvimento humano, numa visão egocêntrica, trata o aborto como uma expulsão prematura do embrião antes do seu desenvolvimento.
Corroborando com este entendimento, assim define Moore:
”[...] significa uma interrupção prematura do desenvolvimento e refere-se ao nascimento de um embrião ou feto antes de se tornarem viáveis – suficientemente amadurecidos para sobreviverem fora do útero. “
No âmbito jurídico a definição do aborto encontra-se na remansosa doutrina, associação entre a interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, em qualquer fase do ciclo gravídico.
Com muita propriedade podemos destacar o conceito de aborto na doutrina de Mirabete:
”O aborto é a interrupção da gravidez com a morte do produto da concepção, que pode ser ovo, embrião ou o feto, conforme a fase de sua evolução. Pode ser espontânea, natural ou provocado, sendo nesse último caso criminoso, exceto se praticado em uma das formas do art. 128. “
Neste mesmo sentido diz textualmente Damásio:
“Aborto é a interrupção da gravidez com a conseqüente morte do feto (produto da concepção)“
No sentido etimológico, aborto quer dizer privação de nascimento. Advém de ab, que significa privação, e ortus, nascimento.
A palavra abortamento tem maior significado técnico que aborto. Aquela indica a conduta de abortar; esta, o produto da concepção cuja gravidez foi interrompida. Entretanto, de observar que a expressão aborto é mais comum e foi empregada pelo CP nas indicações marginais das disposições incriminadoras.

A jurisprudência, na voz do Supremo Tribunal Federal entendeu, que “pode ocorrer aborto desde que tenha havido a fecundação” , sendo esta, portanto, pressuposto para a configuração do delito.
Nesta égide podemos observar a importância da integração entre o conceito jurídico e o médico-legal, para a definição do aborto, a fim de pré-determinar o objeto a ser normalizado.

Muitas são as formas de abortamento, dentre estas formas podemos citar o aborto espontâneo ou natural, este ocorre por um fator patológico onde o próprio corpo da mulher expulsa o feto, sem a ajuda ou a querência da gestante ou de terceiro tal aborto não é cabível de punição pois é algo que ocorre naturalmente sem a influencia do homem.
Outro tipo de aborto é o aborto acidental, este ocorre por um fato externo e acidental a interrupção da gestação não é querida pela gestante.

Também temos o aborto sentimental ou humanitário, este tipo de aborto é permitido pela legislação penal brasileira, e consiste em interromper a gestação pois esta foi fruto de uma violência sofrida pela gestante, tal gravidez não era planejada e tão pouco querida porem com o ato sexual forçado adveio a gestação, tal aborto é previsto e legalizado afim de zelar pela saúde mental da gestante.

Também é permitido pelo ordenamento jurídico brasileiro o aborto terapêutico ou necessário que consiste em interromper a gestação quando esta traz riscos fundados a gestante, pois tutela-se um bem jurídico já existente ao invez de tutelar uma expectativa.
Também temos o aborto econômico que consiste em interromper a gestação única e exclusivamente levando em conta a não possibilidade financeira da gestante e/ou de seus familiares, aborto proibido pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Outro aborto conceituado em nossas doutrinas é o aborto honoris causa ou aborto em razão da honra da mulher, consiste em interromper a gestação única e exclusivamente por esta advir de uma relação extra-matrimonial, tal pratica é repudiada pelo nosso ordenamento jurídica.

Também temos o aborto eugênico, este tipo consiste em interromper a gestação quando o feto for portador de graves anomalias fetais tanto físicas como psíquicas, que torne a vida extra-uterina do produto da concepção inviável, este tipo de aborto não é previsto na legislação, porem há vários casos práticos em que juizes e magistrados estão concedendo liminarmente o direito da gestante interromper sua gestação, ora se no próprio ordenamento jurídico o legislador já zelou pela saúde mental da gestante quando legalizou o aborto advindo de estupro por que não legalizar o aborto eugênico? Não seria também uma forma de zelar pela saúde mental da gestante?

Antes de abordar com mais profundidade o tema aborto eugênico temo que
estabelecer a diferença entre feto malformado e inviável, pois as situações fáticas a que se referem estes conceitos são essencialmente diversas.

Assim, a ciência que estuda estas perturbações é a teratologia, que do grego significa teratos, monstro, dentre essas anomalias, destacamos: malformações, perturbações, deformações e síndrome.
As malformações ocorrem durante a formação do ser, elas podem resultar na ausência completa ou parcial de uma estrutura ou em alterações da sua configuração normal. A maioria das malformações tem sua origem durante o período entre a terceira e a oitava semana de gestação. Contudo, as causas poderão ser advindas de fatores ambientais ou genéticos de forma independente ou combinada.

Já as perturbações resultam em alterações morfológicas em estruturas já formadas, são causados por processo destrutivo.
As deformações são causadas por forças mecânicas que moldam uma parte do feto por período prolongado, muitas vezes podem ser revertidas após o nascimento.

A síndrome é um grupo de anomalias que ocorrem juntas e que possuem uma causa específica em comum. São anormalidades na quantidade de cromossomos, podendo ser numéricas ou espontâneas.

Quanto ao feto inviável, diferente das síndromes, perturbações ou deformações, este não possui perspectiva alguma de vida extra-uterina em virtude da má formação de órgãos essenciais a sua sobrevivência, podendo ser detectada a presente anomalia através de alguns exames próprios para a verificação da anormalidade.

Nesta égide defendemos a prática do aborto seletivo, designação esta, aplicada para o aborto nos casos de anomalia fetal, sendo o feto portador de anormalidade inviável ou incurável.
Neste sentido assevera Diniz:
Abortamento seletivo - nomenclatura adotada para designar a interrupção da gestação de feto inviável. Caracteriza-se por um ‘procedimento clínico de expulsão provocada do feto, em nome de suas limitações físicas e/ou mentais. Em geral, fala-se da incompatibilidade com a vida, ou de sua reduzida expectativa de vida extra-uterina.
Fica cristalina neste sentido a diferença basilar entre o feto inviável portador de anomalia fetal, defendida no aborto seletivo e feto mal formado com perspectiva de vida, como a síndrome de down, por exemplo, a qual não se contesta a sua existência.

Podemos verificar hoje a existência de várias técnicas para avaliar o crescimento e o desenvolvimento do feto in utero. Detectando assim, casos de mal formação ou anormalidades cromossômicas. Entre estas técnicas podemos destacar: ultra-sonografia, amniocentese e amostragem de vilosidade coriônicas.
Considerado pela medicina entre a técnicas utilizadas o menos invasivo, está a ultra-sonografia. Tal método emprega o ultra-som para gerar imagens que determinam o tamanho e a posição da placenta e do feto.

A ultra-sonografia é a modalidade primeira de avaliação do feto de imagens por causa de sua ampla disponibilidade, baixo custo e ausência de efeitos adversos conhecidos. O saco coriônico (gestacional) e seu conteúdo podem ser visualizados por ultra-sonografia durante os períodos embrionário e fetal.

Verifica-se, na prática, a utilização desta técnica no período pré-natal, a fim de verificar o desenvolvimento do feto no útero materno. Sua precisão quanto à avaliação e diagnóstico fetal chega a quase 100% de comprovação, existindo muita credibilidade no cenário médico-legal.
Outra técnica muito utilizada é a amniocentese, a qual envolve a coleta de líquido amniótico, onde uma agulha é inserida na cavidade amniótica, através da parede abdominal da mãe e do útero. São colhidos aproximadamente entre 20 e 30ml do líquido, de modo que esse procedimento não costuma ser realizado antes de 14 semanas de gestação, pois não há líquido suficiente antes desse tempo. Após a coleta do liquido amniótico este será analisado em laboratório a fim de se verificar alguma anormalidade; sendo a alta existência concentrada de proteína fetal, principal causa de anormalidade do concepto.

A amostragem de vilosidade coriônica é uma outra técnica utilizada pela medicina para verificar anormalidade fetal a partir da nona semana de gestação. Podem ser realizadas através de biópsia, inserindo-se uma agulha na cavidade uterina, orientando-se por ultra-sonografia.

A biópsia das vilosidades coriônicas é usada para detectar anormalidades cromossômicas, erros inatos no metabolismo e distúrbios ligados ao X. A amostragem da vilosidade coriônica pode ser feita a partir da nona semana de gestação (sete semanas após a fertilização). O risco de perda fetal é cerca de 1%, ligeiramente maior que o da amniocentese. A principal vantagem da CVS sobre a amniocentese é que os resultados são obtidos várias semanas mais cedo do que quando é feita a amniocentese.

Podemos salientar a precisão que estas técnicas possuem para diagnosticar alguma anomalia durante a gestação materna, reconhecendo casos de má formação do concepto e sua posterior sobrevida. Ascendendo cada vez mais a difusão da teoria do aborto seletivo, a qual ganha adeptos principalmente da classe médica, como também de gestantes que estejam sobre alguma anormalidade irreversível de vida fetal.

Atualmente o aborto seletivo não encontra previsão legal no ordenamento jurídico, existindo alguns projetos de lei que tramitam no Congresso Federal, a fim de legalizar e tornar lícita esta modalidade de aborto. Tramitam hoje no Congresso 17 projetos de lei, entre eles talvez o mais viável, está o projeto de lei no 1.956/96 , de autoria de Marta Suplicy. O aludido projeto autoriza a interrupção da gravidez quando o produto da concepção não apresenta condições de sobrevida em decorrência de malformação incompatível com a vida ou de doença degenerativa incurável, precedida de indicação médica, ou quando por meios científicos se constatar a impossibilidade de vida extra-uterina.

De outra monta, podemos verificar também o Código de Ética da Medicina, que pouco vem corroborar com a situação atual da legislação penal pertinente. Também, neste sentido, se encontra o Código de Enfermagem que assevera o permissivo legal, mas, assegura ao profissional de enfermagem o direito de praticar ou não aqueles abortos autorizados pelo Código Penal, em face do respeito a sua livre consciência.

Do ponto de vista dos Códigos de Ética, especialmente no de medicina, vamos encontrar no seu art. 43 a única referência sobre o aborto, sem definir objetivamente a situação. Apenas coloca-se em concordância com a legislação civil vigente. Já o Código de Enfermagem é mais direto, proibindo no art. 45 a prática de aborto. E nos casos previstos em lei, respeita a consciência de cada.profissional.
Destarte, alguns magistrados tomam, na verdade, decisões heróicas, suprimindo esta lacuna legislativa através de posicionamentos doutrinários a favor do aborto seletivo. Uma das decisões que mais tiveram repercussão em nível social foi a liminar concedida pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, a fim de liberar o aborto por anomalia fetal, de um feto portador de anencefalia, “anomalia caracterizada pela ausência de todas as funções superiores do sistema nervoso central, impossibilitando o feto de uma vida extra-uterina” . No entanto, a decisão proferida pelo atual ministro foi por uma total falta de coerência, cassada, por um excesso de selo e formalidade que imperam em nosso sistema judiciário vultoso, que assim justificou o lobby da corrente pró-vida e da igreja católica, contrárias a toda forma de aborto.

Contudo, na falta de algum permissivo legal que orientem estes magistrados e a própria sociedade brasileira, verifica-se, no dia a dia forense, várias solicitações de alvarás judiciais, sendo este por muitas vezes concedidos.
Conforme Tessaro:
“[...] aspecto que merece destaque é o fato de alguns magistrados ressaltarem que a falta de previsão legal expressa não autoriza o judiciário a deixar sem solução uma controvérsia, principalmente porque as leis retratam o posicionamento de um determinado momento histórico, e necessitam de uma adequação para atender aos fins da sociedade contemporânea. “
Complementa ainda esta doutrinadora, asseverando:
Portanto, observa-se que os magistrados, ao deferirem os pedidos de interrupção de gravidez de feto inviável, reconhecem no desenvolvimento científico e tecnológico da medicina, a possibilidade de um diagnóstico pré-natal seguro e preciso, atestando a impossibilidade de sobrevida extra-uterina, constituindo-se em um expediente legítimo apto a ensejar tais autorizações.

Outrossim, foi-se o tempo em que a ausência de legislação era capaz de por termo ou sobrestar algum processo judicial, hoje se verifica a necessidade de avaliar e encontrar alguma solução serena e, sobretudo urgente, a fim de não perecer o objetivo maior tutelado pelo Estado, ou seja, a solução pacífica dos conflitos.
Alguns doutrinadores defendem, com muita propriedade a atipicidade do aborto seletivo, ou seja, aquele em que o feto é portador de anomalia inviável, partindo-se do pressuposto de que o bem jurídico tutelado pelo direito positivo, a vida intra-uterina, não existiria em face de não haver expectativa de vida do concepto.
Assim, defende-se que o direito à vida amplamente difundido em nossa constituição, também tutelado como bem jurídico no Código Penal, não teria aplicabilidade no aborto seletivo. Preconiza-se que o bem jurídico vida defendido sobretudo no delito de aborto, seria na verdade uma expectativa de direito defendida pelo legislador, assim o feto portador de anomalia fetal inviável, por não possuir esta expectativa, não teria este bem jurídico tutelado, não possuindo legitimidade passiva na figura típica do crime de aborto. Desta forma o aborto seletivo seria um ato atípico, ou seja, legal, já que para se ter um crime deve-se ter um ato típico e antijurídico.
Nesse mesmo diapasão podemos verificar na doutrina de Diniz e Diaulas:
Direito Penal, ao punir o aborto, está, efetivamente, punindo a frustração de uma expectativa, a expectativa potencial de surgimento de uma pessoa. Por essa razão, o crime de aborto é contra uma futura pessoa – nesse ponto reside a sua virtualidade - não porque o Código Penal teria atribuído o status de pessoa ao feto – o que nem o Código Civil atribuiu -, mas porque o feto contém a energia genética potencial para um futuro próximo, constituir uma realidade jurídica distinta de seus pais, o que ocorrerá se for cumprido o tempo natural de maturação fetal e se o parto ocorrer com sucesso. [...] Isso significa que só a conduta que frustra o surgimento de uma pessoa tipificaria o crime de aborto.[...] Esse feto portador de inviabilidade extraordinária não é sujeito passivo do crime de aborto, pois não apresenta aptidão para atingir o status de pessoa, para ser investido, com o nascimento, dos demais atributos da personalidade.
Verificamos, pois, que este entendimento doutrinário encontra respaldo e congruência para prosperar, resolvendo a “omissão”
na legislação pertinente.
Outro argumento constitucional defendido por alguns doutrinadores e que encontra respaldo judicial, baseia-se em alguns princípios do Estado Democrático de Direito, como o direito à vida e o direito à liberdade, os quais não podem se opor, em desfavor da saúde psíquica da gestante. Defendem, Alexandre Moraes e Luiz Regis Prado, que a vida do feto não estará mais presente após alguns dias do parto, já o dano psicológico sofrido pela mãe, este poderá se verificar após vários anos de gestação ilusória.
Nesta mesma égide verifica-se a intenção do legislador ao defender a saúde psíquica da gestante como uma excludente da ilicitude prevista no Código Penal, nos casos de aborto precedido de estupro (art.128, II, CP). Deste modo, não haveria congruência legal o mesmo ordenamento jurídico outrora defender aplicação de uma forma de exclusão de ilicitude, quando ainda existe vida e possibilidade de vida do concepto, para amenizar o sofrimento materno; e nos casos de inexistência de vida do concepto pós-parto, não acolher este mesmo argumento, em face de situações análogas em que se busca resguardar a integridade física e psicológica da mãe.
Oportuno trazermos à colação:
[...] o dano psicológico sofrido pela gestante que optou por interromper a gravidez sem possibilidades de êxito, e teve que insistir no prosseguimento desta em virtude da norma penal, além do sofrimento natural, poderá ensejar grave comprometimento psicológico, sendo comparado a um processo de tortura. Com este entendimento buscamos introduzir no Código Penal mais uma possibilidade de exclusão da antijuridicidade do aborto para parte da doutrina que ainda considera como ato típico o aborto “eugênico” cometido pela gestante.
Desta forma, a doutrina, com estes argumentos perseguem a legalização do aborto por feto inviável; ressalta-se que a legalização almejada trás para a gestante uma possibilidade de legalização do aborto cometido com o seu consentimento, ficando esta previsão restrita à autorização da mãe, como a legalização do aborto precedido de estupro. Esta possibilidade busca também a liberdade de opção da mãe e de sua livre escolha.

Com os avanços científicos da medicina na captação de informações acerca da legalização do aborto em diversas situações, podemos verificar na bioética a ciência que acompanha estas questões, sob uma visão ética.
Para Durant, a Bioética é o:
“[...] estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas por uma administração responsável da vida humana (ou da pessoa humana), tendo em vista os progressos rápidos e complexos do saber e das tecnologias biomédicas.”
O aborto por anomalia fetal passou a ser considerado um tema na pauta da bioética a partir dos anos de 1980 com a interseção da ginecologia com a genética e a medicina fetal, sobretudo com a popularização da amniocentese nos Estados Unidos. Desde então a bioética vem contribuindo para a diversidade de reflexões éticas sobre os temas relacionados à saúde e à doença.

As discussões bioéticas em torno do aborto partem de um pressuposto da autonomia e discutem situações novas que cruzam este tema, como é o caso do uso das informações de embriões humanos. Um argumento ético que reforça o princípio da autonomia das mulheres é o de que o embrião é uma entidade amoral, isto é, uma entidade biológica sem prerrogativa de direito.
Tanto na utilização de embriões para pesquisas científicas como no aborto, alguns teóricos bioéticos ainda são muito cautelosos, mas o que se verifica é a argumentação em torno da amoralidade dos embriões humanos, assim como do feto, em face de uma autonomia indiscutível e preponderante da mulher.
Podemos verificar também neste prisma, a doutrina de Diniz e Ribeiro:
Para muitos pesquisadores da bioética, o argumento do conflito de interesses entre a mulher e o feto é absolutamente nulo, indiferente ao fato de o embrião poder ser, em outras situações, detentor de alguma moralidade.

Assim, o que se pretende nesta visão da bioética é garantir a autonomia das gestantes para liberarem sobre suas próprias vidas, possuindo condições sociais e sanitárias de realizá-lo se assim o desejarem, ao passo que as mulheres que consideram o aborto imoral devam ser livres para jamais o realizarem.

O argumento fundamental é, então, o da defesa e promoção de uma sociedade plural que proporcione as condições sociais, sanitárias e políticas para que diferentes mulheres expressam suas crenças frente ao aborto.

Dessa maneira, constata-se que a interrupção da gestação por anomalia fetal incompatível com a vida produz debates bioéticos onde o cerne da questão é a qualidade de vida e dignidade da pessoa, que deve complementar o conceito à vida.
Outrossim, este tema poderia ser tratado em uma situação que escaparia do alcance da norma geral do aborto, diminuindo os impasses éticos.

De qualquer sorte, verifica-se que o abortamento seletivo possui subsídios bioéticos suficientes para respaldar a licitude deste ato, visto que a liberdade da gestante nestes casos esta aparente tanto do ponto de vista ético como moral.

E será que não se deve legalizar o aborto eugênico?
Resumo: Anecefalia; Aborto; Vida Intra-Uterina; Vida Extra-uterina; Lei 9.434/97; Morte Encefálica; Anteprojeto para o novo Código Penal; CNTPS e STJ; Conclusão, Bibliografia.
Não se deve tutelar um bem jurídico já existente que seria a dignidade da gestante, ao invez de tutelar uma expectativa de vida como é a de um
O aborto do feto anencefálico (com ausência de cérebro) impossibilita a doação de seus órgãos saudáveis (como coração e pulmão) a outros bebês. A opinião é do procurador-geral da República, Claudio Fonteles, que encaminhou parecer ao Supremo Tribunal Federal sobre o assunto. Ele opinou contra a interrupção da gestação de fetos anencefálicos.
A Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 foi ajuizada pela CNTS (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde) contra os artigos 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal, que estipulam penalidades para o aborto. No início de julho, o ministro do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio concedeu liminar, com efeito vinculante, que autoriza a interrupção em caso de gestação de feto anencéfalo.
No parecer, Fonteles argumentou que o direito à vida é marco primeiro no espaço dos direitos fundamentais, “conforme estabelece o caput do artigo 5º da Constituição Federal” e que a vida intra-uterina existe se o processo de gestação é normal. Ele cita o artigo 41 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o artigo 1º da Convenção sobre os Direitos da Criança para afirmar que há vida desde a concepção.
O procurador-geral da República afirmou também que não é toda mãe que sofre tortura psicológica e física -- como afirma a CNTS -- por gestar uma criança que terá pouco tempo de vida. Ao passo que, segundo Fonteles, “todos os fetos anencefálos terão suprimidas suas vidas”.
De acordo com ele, a interrupção da gravidez só é permitida quando existe risco de vida para a mãe, caso em que se admite o “aborto terapêutico”, e se a mulher tiver sido vítima de estupro, caso do “aborto sentimental”. O fato de o feto ser anencéfalo, segundo Fonteles, não se encaixa “nessas situações”.
A CNTS alega que a patologia torna inviável a vida extra-uterina e que a proibição do aborto fere a dignidade humana, os princípios da legalidade, da liberdade e autonomia e o direito à saúde.
Apesar de o bebê anencéfalo viver pouco tempo, Fonteles entendeu que “o direito à vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana”. De acordo com ele, a dor da gestante, por maior que seja, “não é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida”.
Fonteles finaliza: “Quer por ser injurídico, no caso apresentado, o recurso à interpretação conforme a Constituição, quer pela primazia jurídica do direito à vida, como aqui desenvolvida, o pleito é de ser indeferido”.
Conheça a posição da PGR
Parecer n.º 3358/CF
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54-DF
RELATOR : EXMO. SR. MINISTRO MARCO AURÉLIO
AGRAVANTE : CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE-CNTS
Ementa:
1. O pleito, como apresentado, não autoriza o recurso à interpretação conforme a Constituição: considerações.
2. Anencefalia. Primazia jurídica do direito à vida: considerações.
3. Indeferimento do pleito
1. A Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde ajuíza argüição de descumprimento de preceito fundamental.
2. Considera "como ato do Poder Público causador da lesão o conjunto representado pelos arts. 124, 126, caput, e 128, I e II, do Código Penal" (petição inicial – fls. 3 – in fine).
3. Fundamenta-se em que tal "conjunto normativo" vulnera a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, IV), o princípio da legalidade, liberdade e autonomia da vontade (artigo 5º, II) e o direito à saúde (artigo 6º, caput e 196) "todos da Constituição da República" (ainda: pórtico da petição inicial a fls. 3).
4. Desenvolve sua pretensão asseverando:
a) que a patologia da anencefalia "torna absolutamente inviável a vida extrauterina" (fls. 4), daí porque não se está a falar do "aborto eugênico, cujo fundamento é eventual deficiência grave de que seja o feto portador. Nessa última hipótese, pressupõe-se a viabilidade da vida extra-uterina do ser nascido, o que não é o caso em relação à anencefalia" (nota de pé de páginas a fls. 6, da petição
inicial) ADPF n.º 54 2fere a dignidade da pessoa humana na medida em que "a convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica (petição inicial: item 30 a fls. 18)
- fere o princípio da legalidade, porque "antecipação terapêutica do parte em hipóteses de gravidez de feto anencefálico não está vedada no ordenamento jurídico (petição inicial: item 33 a fls. 19)
- fere o direito à saúde porque "a antecipação do parto em hipótese de gravidez de feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para obviar o risco e a dor da gestante" (petição inicial: item 35 a fls. 20)
5. Cuidemos do alegado.
6. Estabeleço que o recurso à interpretação conforme à Constituição, pedra de toque do pleito em exame, conduz-nos à reflexão sobre os limites do uso deste instrumento na avaliação dos preceitos normativos.
7. Valho-me, aqui, dos precisos ensinamentos de Rui Medeiros – "A Decisão de Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, postos no específico Capítulo II, desta obra, a versar sobre "O Conteúdo da Decisão de
Inconstitucionalidade", e principio por reproduzir seu alerta, verbis:
"Por outro lado, e agora quanto às relações entre os órgãos de fiscalização da constitucionalidade em geral e o legislador, ninguém ignora que a interpretação conforme a Constituição se pode converter num meio de os órgãos de controle se substituírem ao legislador.
"Perante os perigos da usurpação do conteúdo normativo-constitucional por um conteúdo legislativo apócrifo" salta à vista a importância da determinação dos limites da interpretação conforme a Constituição.
Este é, justamente, um dos domínios em que se joga a problemática do "activismo" ou da "criatividade" dos juizes constitucionais. Há que impedir a transformação, ainda que com efeitos limitados ao caso concreto da pretensa interpretação adequadora em verdadeira e própria modificação da disposição fiscalizada".
A relevância da questão não pode ser subestimada com base na idéia de que quem tem competência para proferir uma decisão de inconstitucionalidade de um preceito legal pode, por maioria de razão,
optar por uma decisão interpretativa.
Com efeito, "quando o conteúdo atribuído à lei pelo órgão fiscalizador através do apelo à interpretação conforme a ADPF n.º 54 3
Constituição contém já não um minus, mas antes um aliud em face do conteúdo originário da lei", o órgão fiscalizador "intervém mais fortemente nas competências do legislador do que nas hipóteses em que profere uma decisão de invalidade": enquanto após a decisão de invalidade da lei a nova conformação material positiva é realizada diretamente pelo legislador, no caso de decisão interpretativa tal tarefa é levada a cabo pelo próprio órgão fiscalizador.
Este, mais do que interpretar a lei, corrige-a ou converte-a e, obviamente, a correção e a conversão da lei atingem mais intensamente as competências do legislador do que a mera invalidação ou não aplicação da lei. "A admissibilidade de uma correção intrínseca da lei" é, portanto, muito mais atentatória " da
preferência legislativa constitucionalmente concretizadora do que a declaração ou reconhecimento de inconstitucionalidade." (obra citada – pg. 300/1, grifei)
8. Embora não expresse adesão aos que consideram os sentidos literais possíveis da lei como o limite da interpretação conforme à Constituição – "Os sentidos literais possíveis não constituem, de per si, limites à interpretação lato sensu corretiva da lei, porque, nesta sede, à letra se pode preferir o sentido que a letra traiu" (obra citada – pg. 305, grifamos), Rui Medeiros adverte, verbis:
"Sobretudo, e este é o aspecto que importa aqui realçar, a relevância do cânone da interpretação conforme à Constituição não exclui, antes tem como pressuposto de sua correta consideração, uma bem consciente demarcação dos níveis jurídicoconstitucional
e jurídico-legislativo ordinário, não pretendendo anular numa
confusão de planos a relativa autonomia hermenêutico-jurídico de ambos." (obra citada – pg. 308, grifei)
9. E bem prosseguiu, verbis: "Por outro lado, como referiu Volker Haak em 1963, o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta, abstraindo da conexão sistemática com a Constituição, não pode ser posto em causa pela interpretação conforme a Constituição, visto que o elemento sistemático-teleológico transcendente à lei permite sempre, de per si, o resultado conforme a Constituição e, por isso, para excluir o resultado conforme com o sistema é necessário buscar um limite fora do sistema. Se não fosse assim, nunca haveria leis inconstitucionais: a conversão da ratio legis ou do elemento teleológico (...) aos compromissos e ao espírito do sistema político-normativo constitucional, aliada à possibilidade de ultrapassar os sentidos literais possíveis, afastaria em sede interpretativa o problema das leis inconstitucionais. Uma tal conclusão seria, manifestamente, incompatível com a previsão pelo legislador constitucional do fenômeno da inconstitucionalidade da lei. Os limites à interpretação em conformidade com a Constituição têm, portanto, de decorrer da interpretação da lei enquanto tal." (obra citada – pg. 309/10, grifei)
b) "O que se visa, em última análise, é a interpretação conforme a Constituição da disciplina legal dada ao aborto pela legislação penal
infraconstitucional, para explicitar que ela não se aplica aos casos de antecipação terapêutica do parto na hipótese de fetos portadores de anencefalia, devidamente certificada por médico habilitado" (petição inicial: item 19 a fls. 12)
c) acentuando que "não há viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro" (petição inicial: item 26 a fls. 15) "o foco da atenção há de voltar-se para o estado da gestante", para extrair que a permanência do feto no útero materno:
feto portador de graves anomalias genéticas ou congênitas?
fere a dignidade da pessoa humana na medida em que "a convivência diuturna com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto dentro de seu corpo, que nunca poderá se tornar ser vivo, podem ser comparadas à tortura psicológica (petição inicial: item 30 a fls. 18)
- fere o princípio da legalidade, porque "antecipação terapêutica do parte em hipóteses de gravidez de feto anencefálico não está vedada no ordenamento jurídico (petição inicial: item 33 a fls. 19)
- fere o direito à saúde porque "a antecipação do parto em hipótese de gravidez de feto anencefálico é o único procedimento médico cabível para obviar o risco e a dor da gestante" (petição inicial: item 35 a fls. 20)
5. Cuidemos do alegado.
6. Estabeleço que o recurso à interpretação conforme à Constituição, pedra de toque do pleito em exame, conduz-nos à reflexão sobre os limites do uso deste instrumento na avaliação dos preceitos normativos.
7. Valho-me, aqui, dos precisos ensinamentos de Rui Medeiros – "A Decisão de Inconstitucionalidade: os autores, o conteúdo e os efeitos da decisão de inconstitucionalidade da lei, postos no específico Capítulo II, desta obra, a versar sobre "O Conteúdo da Decisão de
Inconstitucionalidade", e principio por reproduzir seu alerta, verbis:
"Por outro lado, e agora quanto às relações entre os órgãos de fiscalização da constitucionalidade em geral e o legislador, ninguém ignora que a interpretação conforme a Constituição se pode converter num meio de os órgãos de controle se substituírem ao legislador.
"Perante os perigos da usurpação do conteúdo normativo-constitucional por um conteúdo legislativo apócrifo" salta à vista a importância da determinação dos limites da interpretação conforme a Constituição.
Este é, justamente, um dos domínios em que se joga a problemática do "activismo" ou da "criatividade" dos juizes constitucionais. Há que impedir a transformação, ainda que com efeitos limitados ao caso concreto da pretensa interpretação adequadora em verdadeira e própria modificação da disposição fiscalizada".

A relevância da questão não pode ser subestimada com base na idéia de que quem tem competência para proferir uma decisão de inconstitucionalidade de um preceito legal pode, por maioria de razão,
optar por uma decisão interpretativa.
Com efeito, "quando o conteúdo atribuído à lei pelo órgão fiscalizador através do apelo à interpretação conforme a ADPF n.º 54 3
Constituição contém já não um minus, mas antes um aliud em face do conteúdo originário da lei", o órgão fiscalizador "intervém mais fortemente nas competências do legislador do que nas hipóteses em que profere uma decisão de invalidade": enquanto após a decisão de invalidade da lei a nova conformação material positiva é realizada diretamente pelo legislador, no caso de decisão interpretativa tal tarefa é levada a cabo pelo próprio órgão fiscalizador.
Este, mais do que interpretar a lei, corrige-a ou converte-a e, obviamente, a correção e a conversão da lei atingem mais intensamente as competências do legislador do que a mera invalidação ou não aplicação da lei. "A admissibilidade de uma correção intrínseca da lei" é, portanto, muito mais atentatória " da
preferência legislativa constitucionalmente concretizadora do que a declaração ou reconhecimento de inconstitucionalidade." (obra citada – pg. 300/1, grifei)
8. Embora não expresse adesão aos que consideram os sentidos literais possíveis da lei como o limite da interpretação conforme à Constituição – "Os sentidos literais possíveis não constituem, de per si, limites à interpretação lato sensu corretiva da lei, porque, nesta sede, à letra se pode preferir o sentido que a letra traiu" (obra citada – pg. 305, grifamos), Rui Medeiros adverte, verbis:
"Sobretudo, e este é o aspecto que importa aqui realçar, a relevância do cânone da interpretação conforme à Constituição não exclui, antes tem como pressuposto de sua correta consideração, uma bem consciente demarcação dos níveis jurídicoconstitucional
e jurídico-legislativo ordinário, não pretendendo anular numa
confusão de planos a relativa autonomia hermenêutico-jurídico de ambos." (obra citada – pg. 308, grifei)
9. E bem prosseguiu, verbis: "Por outro lado, como referiu Volker Haak em 1963, o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta, abstraindo da conexão sistemática com a Constituição, não pode ser posto em causa pela interpretação conforme a Constituição, visto que o elemento sistemático-teleológico transcendente à lei permite sempre, de per si, o resultado conforme a Constituição e, por isso, para excluir o
resultado conforme com o sistema é necessário buscar um limite fora do sistema. Se não fosse assim, nunca haveria leis inconstitucionais: a conversão da ratio legis ou do elemento teleológico (...) aos compromissos e ao espírito do sistema político-normativo constitucional, aliada à possibilidade de ultrapassar os sentidos literais possíveis, afastaria em sede interpretativa o problema das leis inconstitucionais. Uma tal conclusão seria, manifestamente, incompatível com a previsão pelo legislador constitucional do
fenômeno da inconstitucionalidade da lei. Os limites à interpretação em conformidade com a Constituição têm, portanto, de decorrer da interpretação da lei enquanto tal." (obra citada – pg. 309/10, grifei)
10. Mesmo no campo das concepções subjetivistas, ou objetivistas, da interpretação, corretamente anotou Rui Medeiros, verbis:
ADPF n.º 54 4 "Mas, tanto numa linha subjectivista, como numa perspectiva eclética ou até, como demonstra a posição de Oliveira Ascensão ou de Volker Haak, objetivista moderada, aquilo que o legislador quis claramente e como querido, o declarou deve ser tomado como conteúdo da sua regulamentação.
Por isso, pelo menos em princípio – ou, caso se perfilhe a posição de Robert Alexy, desde que não se apresentem motivos racionais capazes de anular as razões que determinam esses limites -, só quando a vontade do legislador não pode ser reconhecida em tais
termos, está indicada uma interpretação conforme à Constituição.
O apelo à Constituição em sede de interpretação em sentido estrito não pode neste sentido, contrariar a letra e a intenção claramente reconhecida do legislador ou, numa versão mais restritiva, a intenção que está subjacente à tendência geral da lei ou às opções fundamentais nela consagradas." (obra citada – pg. 312)
11. E contemplando o tema à luz das leis pré-constitucionais, tal aqui acontece, enfatiza Rui Medeiros, verbis: "Em contrapartida, a reivindicação de um objectivismo actualista abre espaço para
certas teorias que flexibilizam os limites da interpretação conforme à nova Constituição das leis pré-constitucionais. Não é por acaso que se fala neste tipo de leis. De fato, embora as lei pós-constitucionais com o decurso do tempo também se tornem leis antigas, as referidas teorias preocupam-se, sobretudo, em acentuar a possibilidade de a interpretação conforme à Constituição contrariar a intenção do
legislador (histórico) nos casos em que a lei em causa haja sido editada sob um outro regime, tanto mais que o princípio da separação de poderes tem, aqui, um peso bastante menor. Mas subsistem sempre limites.
Não é possível, por exemplo, uma interpretação conforme à Constituição de um regulamento proveniente do tempo do nacional-socialismo, portanto imbuído do pensamento próprio da Administração do Estado Totalitário, que em nenhum aspecto satisfazia as exigências de determinabilidade do Estado de Direito.
Ou seja, e este é o aspecto que nos interessa sublinhar, mesmo que se perfilhe esta concepção, deve ficar claro que está vedada aos juízes a 'feitura' de uma nova lei com conteúdo diferente da anterior: a interpretação conforme a Constituição não pode, em caso algum, converter-se em instrumento de revisão do Direito anterior à Constituição.

Só que, na perspectiva do objectivismo actualista agora referida, enquanto a vontade do legislador documentada através da história do preceito, pode eventualmente limitar a interpretação conforme à Constituição de leis pós-constitucionais (não podendo ser falsificada através da interpretação em conformidade com a Constituição), basta, em relação a leis anteriores à Constituição, que o novo entendimento seja admitido pela letra do preceito e não contrarie o sentido objectivo da lei." (obra citada – pg. 314, grifei)
12. Em síntese, releva Rui Medeiros, verbis: "A correlação da lei significa apenas correcção da letra da lei, não podendo ser realizada quando os sentidos literais correspondem à intenção do legislador ou quando o resultado que se pretende alcançar não se harmonize
com a teleologia imanente à lei. Para além disso, por mais desejável que se (ADPF n.º 54 5) apresente uma alteração do sistema normativo, essa alteração pertence às fontes de direito, não ao intérprete (...). Razões extremamente ponderosas de segurança e
de defesa contra o arbítrio alicerçam esta conclusão. Isto já para não falar do princípio da separação de poderes. A interpretação correctiva da lei em conformidade com a Constituição não se traduz, portanto, numa revisão da lei em conformidade com a Lei Fundamental."
(obra citada – pgs. 316/7)
13. Para concluir – e agora já no campo que Rui Medeiros dedicou às decisões modificativas e à reflexão sobre a jurisdição constitucional em sua função negativa, ou positiva, - é de se ler, verbis:
"III - Pelo contrário, à semelhança de GOMES CANOTILHO, o nosso ponto de partida – que, como se verá, é confirmado por uma leitura global do sistema português de fiscalização da constitucionalidade – é o de que o Tribunal Constitucional, entre nós, desempenha e não pode deixar de desempenhar fundamentalmente a função de jurisdictio: não é um legislador, ou, mesmo, superlegislador apócrifo.
Sem dúvida que a função jurisdicional não é já hoje, nem se poderá mais compreender como a atividade de mera aplicação formal de um direito inteiramente dado. Mas à concreta realização do direito não compete a intencionalidade estratégica, reformadora e programática que corresponde aos poderes de direção política e que no universo jurídico (melhor, político-jurídico) será própria do legislador.
De facto, independentemente do significado que a tese do legislador negativo assume no modelo de justiça constitucional do Mestre de Viena e das objeções que podem ser dirigidas à visão Kelseniana da Constituição e do controlo da constitucionalidade, a contenção do controlo da constitucionalidade dentro dos limites do controlo negativo é justificada pelo princípio democrático e pelo princípio da separação e interdependência dos órgãos de soberania.
O princípio da separação de poderes, embora não seja um princípio rígido, implica, no seu conteúdo essencial, a distinção entre legislação e jurisdição. O princípio democrático postula, por seu lado, que a decisão política seja tomada, diretamente ou através de órgãos representativos politicamente responsáveis pelo povo.
A negação ou atenuação da separação entre legislação e jurisdição põe, inevitavelmente, em causa o próprio modelo democrático representativo vigente. Como sublinha Vital Moreira, a jurisdição constitucional não está constitucionalmente habilitada para usurpar o papel do legislador ordinário, expressão da maioria de governo, substituindo-se àquele nas escolhas constitucionalmente admissíveis (...)
A idéia fundamental é a de que ao juiz constitucional só compete averiguar se a lei é ou não contrária à Constituição, mas não lhe compete substituir-se ao legislador na formulação das soluções conformes à Constituição. Aqui continuam a ter plena validade as limitações decorrentes do princípio da maioria e da separação de
poderes.
É à maioria democraticamente legitimada para governar que compete
fazer as leis e não aos juízes, mesmo ao juiz constitucional. A este só compete verificar se aquele legislou contra a Constituição. A introdução de um sistema de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade das leis não retira, portanto, à lei a sua posição de centralidade no ordenamento jurídico-constitucional. (obra citada – pgs. 494/5, grifei) ADPF n.º 54 6
14. Tudo assim posto, os textos normativos, apresentados pela autora, ensejam a interpretação conforme?
15. Por certo que não!
16. Os artigos 124 e 126 tipificam, criminalmente, o aborto provocado pela gestante, ou com seu consentimento (124) e o aborto provocado por terceiro (126).
17. Bastam-se no que enunciam, e como estritamente enunciam.
18. Aliás, injurídico, data venia, manusear-se com a interpretação conforme a dizerse que na definição dos tipos penais incriminadores, não seja criminalizada tal situação.
19. No caso em estudo, há norma específica, a propósito, a do artigo 128 e é para ela que há de se voltar o tema da interpretação conforme. Reconheceu-o, aliás, a própria petição inicial,
em seu item 9, a fls. 8, verbis:
"Note-se, a propósito, que a hipótese em exame só não foi expressamente abrigada no art. 128 do Código Penal como excludente de punibilidade (ao lado das hipóteses de gestação que ofereça risco de vida à gestante ou resultante de estupro) porque em 1940, quando editada a Parte Especial daquele diploma a
tecnologia existente não possibilitava o diagnóstico preciso de anomalias fetais incompativa, com a vida. Não se pode permitir, todavia, que o anacronismo da legislação penal impeça o resguardo de direitos fundamentais consagrados pela Constituição, privilegiando-se o positivismo exacerbado em detrimento da interpretação evolutiva e dos fins visados pela norma" (grifei)
20. Portanto, os artigos 124 e 126 passam muito ao largo da interpretação conforme.
21. O artigo 128 não a alberga, outrossim.
22. As situações extintivas da antijuridicidade, que enuncia, apresentam "o sentido inequívoco que a lei enquanto tal apresenta", para que sejam rememoradas as palavras de Rui Medeiros (item 9, deste parecer), sentido inequívoco e preciso, que se completa, e legaliza o aborto:
a) para que a mãe não morra (aborto terapêutico)
b) se a mãe, vítima de estupro, consente no aborto (aborto sentimental)
23. A situação de anencefalia não se coaduna, por óbvio, nessas situações.
ADPF n.º 54 7
24. O feto anencéfalo não causa a morte da mãe. Afasta-o a própria petição inicial.
25. Se causasse tal situação, ter-se-ia diante o aborto terapêutico.
26. Quanto ao aborto sentimental não há discrepância na abalizada doutrina penal de que sua compreensão é limitadíssima à hipótese que enuncia: gravidez resultante de estupro. De se ler, Heleno Claudio Fragoso, verbis:
"O aborto sentimental (que se realiza em conseqüência de um crime) todavia não se confunde com o aborto eugênico (conveniência de evitar procriação indesejável) ou
com o aborto por indicação social (miséria ou dificuldades econômicas dos pais), que são sempre criminosos perante nossa lei.
A exclusão do crime depende aqui do prévio consentimento da ofendida ou de seu representante legal (se for incapaz), devendo o médico certificar-se da existência de estupro (e não de outro crime sexual). Trata-se de norma excepcional, que não admite interpretação analógica. Não pode ser ampliada para legitimar o aborto quando a mulher foi vítima de outro crime, como, por exemplo, o de sedução”. (in – Lições de Direito Penal – 7ª edição – pg. 123 – grifos do original e meu)
27. Por tais considerações, lugar não há a que se cogite de interpretação conforme a Constituição nos textos apresentados.
28. Para encerrar este tópico, ainda uma vez com Rui Medeiros, verbis: "Daí a importância da afirmação da regra de que "o Tribunal Constitucional só pode declarar (ou não declarar) a inconstitucionalidade (ou ilegalidade) da norma em causa, mas não pode substituí-la por outra norma por ele criada (...) A função
do Tribunal Constitucional é uma função de controle, de caráter essencialmente negativo (...) Ele é um contralegislador e não outro legislador." (obra citada – pg. 496 – grifei)
29. Passo a outra linha de argumentação, e sustento que a vingar a tese do autor, sacrificado está o direito à vida.
30. Com efeito, está no caput, do artigo 5º, da Constituição Federal, que abre o Título alusivo aos "Direitos e Garantias Fundamentais, verbis: "Art. 5º: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida..." (grifei)
31. Portanto o direito à vida é posto como marco primeiro, no espaço dos direitos fundamentais.
ADPF n.º 54 8
32. O autor desta ação tem por tema central do pleito o fato de que nos casos de anencefalia não há possibilidade de vida extra-uterina, então razão não há a que permaneça a gestação.
33. Mas se há normal processo de gestação vida intra-uterina existe.
34. E nos caos de anencefalia há o normal desenvolvimento físico do feto: formam-se seus olhos; nariz; ouvidos; boca; mãos, enfim o que lhe permite sentir, e também braços; pernas; pés; pulmões; veias; sangue que corre, o coração.
35. Ora, o artigo 2º de nosso Código Civil, justo por não obscurecer esta realidade da vida que se forma no ventre materno, é textual, verbis: "Artigo 2º: A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro". (grifei)
36. O artigo 4.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é, igualmente textual, verbis: "Toda pessoa tem direito a que se respeite sua vida. Este direito estará protegido pela lei, no geral, a partir do momento da concepção” (grifei)
37. A Convenção sobre os Direitos da Criança, no seu artigo 1º, reconhece o direito intrínseco à vida que tem todo ser humano concebido. O Preâmbulo desta Convenção é claro, verbis:
"a criança por falta da maturidade física e mental, necessita de proteção e cuidado especiais, aí incluída a proteção legal, tanto antes, como depois, do nascimento."
38. Portanto, os diplomas legais, tanto do direito interno, quanto internacional, estabelecem que vida há, desde a concepção.
39. Eis porque não se revela correta a afirmação do il. advogado da autora quando, a buscar fazer prevalecer o direito da gestante, registrou que "... por fatalidade, não há viabilidade de uma outra vida, sequer um nascituro, cujo interesse se possa eficazmente proteger". (item 26, da petição inicial a fls.
15)
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40. Ora, o próprio dicionarista Aurélio Buarque de Holanda, trazido à colação pelo il. advogado em nota de pé de página sobre a transcrição retro é textual em definir o nascituro como o ser humano já concebido, cujo nascimento se espera como fato futuro certo.
41. O bebê anencéfalo, por certo nascerá.
42. Pode viver segundos, minutos, horas, dias, e até meses. Isto é inquestionável!
43. E aqui o ponto nodal da controvérsia: a compreensão jurídica do direito à vida legitima a morte, dado o curto espaço de tempo da existência humana?
44. Por certo que não!
45. Se o tratamento normativo do tema, como vimos (itens 34/37, deste parecer), marcadamente protege a vida, desde a concepção, por certo é inferência lógica, inafastável, que o direito à vida não se pode medir pelo tempo, seja ele qual for, de uma sobrevida visível.
46. Estabeleço, portanto, e em construção estritamente jurídica, que o direito à vida é atemporal, vale dizer, não se avalia pelo tempo de duração da existência humana.
47. E se assim o é, e o é afetivamente, dada a clareza dos textos normativos importa prosseguir, e indagar, então: a dor temporal da gestante é causa bastante a obscurecer, e então relativizar, a compreensão jurídica do direito à vida, como venho de assentar?
49. Estou em que não!
50. De pronto, não são todas as gestante que, por sua dor, almejam livrar-se do ser humano, que existe em seus ventres maternos.
51. Há, outras também, gestantes, que, se experimentam a dor, superam-na e, acolhendo a vida presente em seu ser, deixam-na viver, pelo tempo possível.
52. Digo isso para assentar que a dor da gestante não é comum a todas as gestantes, de sorte que, e atento ao princípio jurídico da proporcionalidade, a temporalidade do direito à vida, como desenvolvi nos itens 42/45, retro, sobrepuja, por essa perspectiva, o direito da gestante não sentir a dor, posto que a dor não será partilhada por todas as gestantes, ao passo que todos os fetos anencefálos terão suprimidas suas vidas.
53. É de se reconhecer, outrossim, e mantido o raciocínio na ponderação de bens, que por certo o sofrer uma dor, mesmo que intensa, não ultrapassa o por cobro a uma vida, que ADPF n.º 54 10
existe, intra-ulterina, e que, seja sempre reiterado, goza de toda a proteção normativa, tanto sob a ótica do direito interno, quanto internacional.
54. O feto no estado intra-uterino é ser humano, não é coisa!
55. Noutro giro de argumentação, é de se ter presente que o artigo 3º, inciso I da Constituição de nossa República expressa como objetivo seu, perene, verbis:
"I – construir uma sociedade livre, justa e solidária." (grifei)
56. Ora, o pleito da autora, titulado por órgão que representa profissionais da área da saúde, impede possa acontecer a doação de órgãos do bebê anencéfalo a tantos outros bebês que, se têm normal formação do cérebro, todavia têm grave deficiência nos olhos, nos pulmões, nos rins, no coração, órgãos estes plenamente saudáveis no bebê anencéfalo, cuja morte prematura frustará a vida de outros bebês, assim também condenados a morrer, ou a não ver.
57. O pleito da autora, por certo, vai na contra-mão da construção da sociedade solidária a que tantos de nós, brasileiras e brasileiros, aspiramos, e o ser solidário é modo eficaz de instituir a cultura da vida.

58. Quer por ser injurídico, no caso apresentado, o recurso à interpretação conforme a Constituição, quer pela primazia jurídica do direito à vida, como aqui desenvolvida, o pleito é de ser indeferido.






REFERÊNCIAS BIBLIGRÁFICAS
[1] VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009. p.83.
[2] LAZARINI NETO, Pedro. Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 3.ed. São Paulo: Primeira Impressão, 2008.p.381.
[3]NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007.p.573.
[4]CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais,2008.v.3.p.42/43.
[5] VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009. p.86.
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LAZARINI NETO, Pedro. Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 3.ed. São Paulo: Primeira Impressão, 2008.
NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007.
VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009